É sempre difícil dizer qualquer coisa sobre um romance em andamento. A Zona da Invisibilidade. Ainda mais um dos trabalhos mais ambiciosos a que já me propus. Já me toma quatro anos de escrita e sigo trabalhando nele. Há a ansiedade pelo ponto final, mas um prazer sem fim pela escrita. O que posso fazer, se a alguém interessa, é voltar a publicar alguns trechos dele. Eis um dos mais recentes.
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Baré Cola, o nome do refrigerante. E é bizarro, como tudo o que é
bizarro quando se tem dez, doze anos de idade, que ele fale Baé Cola. Inserção anteriorizada do freio lingual é o nome da sua disfunção,
mas, para todos, Zé da Baé é só um sujeito que fala engraçado o nome de um
refrigerante que todos têm que pedir quando vão ao Ramirez ou simplesmente
quando têm que comentar, de forma gratuita Que
puta vontade de tomar uma Baré Cola, caralho! Fala engraçado porque tem a
língua presa, e cujo nome é
justificado, como uma cartão de apresentação e um cardápio, por esta limitação — deixando claro desde o princípio que
tipo de zoação se deve cometer com ele. Nada de tapa na nuca, toquinho na
canela. Só uma risada galhofeira a cada vez que ele pronunciar uma palavra com
a letra R. Serão muitas as
oportunidades de risada galhofeira, portanto.
Agora imagine este garoto: inserção anteriorizada do freio
lingual, língua presa, vamos lá; cabelo tigelinha, braços magros passeando
livremente dentro de uma camiseta gigante, tentando dar jeito no seu quarto na
casa recém-adquirida por seus pais naquele bairro sobre o qual não sabe
praticamente nada — além de, mais uma vez, se parecer com o cenário de uma das
dezenas de capas das fitas K7 que está tentando organizar na sua estante, a despeito do cabelo
grudando na sua testa e atrapalhando sua tentativa de compilação ordenada.
Sugar Hill Gang, Grandmaster Flash and The Furious Five, Public
Enemy, Run DMC, Beastie Boys. Boas companhias no seu processo frustrado de
extravasar dores incompreensíveis aos outros. Uma catarse auditiva que envolvia
sessões trancado em um quarto escuro e abafado com caixas de ovos nas paredes,
para poder cantar junto, no volume máximo, versos que não deveriam fazer muito
sentido para seus vizinhos, imersos no torpor de Jim Beam e dos Gauloises que
os defumavam, sentados em suas varandas e jogando laranjas em direção aos
moleques que tentavam acertar uma goleira de chinelos, com suas bolas de
capotão. Versos dominados em um idioma que não é o seu e que ninguém espera que
domine; infinitos ir-e-vir da fita magnética cansada de play, rewind.
Broken glass everywhere. People pissing
on the stairs, you know they just don't care
I can't take the smell, I can't take the noise. Got no money
to move out, I guess I got no choice. Rats in the front room, roaches in the
back. Junkie's in the alley with a baseball bat
I tried to get away, but I couldn't get far...
A despeito da semelhança daquele lugar com a imagem do que deveria
ser o Brooklyn ou o Harlem, estampando as obras de seus heróis do rap, as
coisas ali pareciam bem mais arranjadas do que tinham sido até então.
A ideia da mudança não pegou ninguém repleto de felicidade. Havia
pouca probabilidade de se imaginar alguma espécie de resort ou um bairro minimante decente, depois do que seu pai lhes
arranjara até então. Sua mãe se recusava minimanente a discutir a ideia. Ela não se achava nem um pouco capaz de suportar
o trauma de uma nova mudança, especialmente para uma vila da qual nunca ouvira
falar, além do prospecto que seu marido tentou fazer com que ela lesse, sem
sucesso, uma boa dúzia de vezes. Uma idílica
e aprazível comunidade distante do Centro, mas próxima do sossego. Mesmo
para Zé da Baé, desacostumado com os subterfúgios publicitários dos órgãos
públicos em seus materiais comerciais, aquilo parecia uma peça para pegar
imbecis desinformados. Só que era difícil que alguma coisa fosse pior do que
ser abordado quase diariamente por seus próprios vizinhos perguntando se tinha algum para lhes arranjar. Ou ser
acordado na madrugada por batidas na porta de compensado dos fundos, por outros
vizinhos — estes já interessados em saber se era seguro tentar invadir a
casa. A decisão do pai, de qualquer
forma, fora tomada. Independente da sua mãe, que preferia passar quase todo o
tempo no quarto, folheando velhas revistas de fofoca ou parecendo, para quem
olhasse, que estava assistindo a Vale a
Pena Ver de Novo, por baixo do aconchego do edredon, por baixo do calor do
chambre, por baixo do torpor do cloridrato de sertralina.
Mas então eles foram. Estavam ali. Habitando uma casa que se
unia ao termo comunidade, estampado
no prospecto, porque era igual a todas as outras que seus olhos podiam
alcançar. Espécie de colônia de férias com nenhuma praia à volta e só o brilho
de um sol escaldante lhes recebendo, acompanhado de olhares de vizinhos que nem
disfarçavam sua atenção, janelas escancaradas, alguns saindo à rua,
interessados no mais novo clã branco demais para aquela comunidade, parecia.
Não estavam ali para dizimar com a aprazível
comunidade. Zé da Baé esperava que o torpor de sua mãe, sendo descarregada do pequeno caminhão que
lhes trouxera, como se fosse também ela uma das velhas quinquilharias que
apinharam na caçamba, parecesse aos outros um atestado de tranquilidade. Olhem,
vizinhos pacatos e silenciosos meneiam suas cabeças recém-chegadas em nossa
direção! Saudê-mo-los, portanto. Parecem boa gente!
A casa cheirava à
tinta, nas suas múltiplas demãos anteriores à sua chegada, e isto era bom. Pinceladas
mal dadas sobre rodapés de madeira que não deveriam ser atingidos eram
justificados pela fortaleza, muito distante do compensado da casa anterior que
parecia feito unicamente para ressoar socos de vizinhos trincados de pó. Tijolo
maciço lhes envolvendo, segurança de paredes nas quais se podia bater, pregar
quadros, encostar móveis sem temer a possibilidade de desabamento sobre algum
desavisado dormindo no quarto ao lado. O móvel está encostado na parede, uma
estante toda sua para enfileirar sua coleção de K7s e seu pequeno Panasonic, ecoando sua canção-tema. Repetição ad infinitum de bumbo, inexorável linha de baixo incansável e uma espécie de
deboche agudo gerado por sampler,
cama sonora para o vocal grave de Melle Mel.
Junkie's in the alley with a baseball bat.
Mas agora estava distante de tudo. O pai tomara o prumo. Fizera o
que tinha que ser feito. Fugiram para longe dos socos nas paredes de
compensados, de vizinhos revirando os lixos uns dos outros.
Mas o quão longe estão?
I tried to get away, but I couldn't get far...
“Cacos de vidro em todos os lugares. As
pessoas urinando nas escadas, você sabe que eles simplesmente não se importam. Eu
não aguento o cheiro, eu não aguento o barulho. Não tenho dinheiro para sair,
eu acho que não tenho escolha. Ratos na sala da frente, baratas nos fundos.
Drogados no beco com um taco de beisebol. Eu tentei fugir, mas eu não podia
chegar longe.” (N. A.)
“Drogados no beco com um taco de
beisebol.” (N. A.)
“Eu tentei fugir, mas eu não podia
chegar longe.” (N. A.)