21 janeiro 2014

Toni Morrison à espreita



Toni Morrison lembra minha mãe. Foi o que pensei quando vi sua foto na contracapa de O olho mais azul, primeiro livro seu que caiu em minhas mãos. Isto foi há bastante tempo, quando então a prosa desta norte-americana me conquistou e, desde então, levou-me a mergulhar em outras obras. Algum tempo depois, deparei-me com uma frase sua -- provavelmente em um destes sites de conselhos literários: Se há um livro que você quer ler, mas não foi escrito ainda, então você deve escrevê-lo.

A frase -- ou conselho -- estabelece uma premissa que desestabiliza a noção mítica que comumente se emprega ao fazer literário: se você quer fazer (escrever um livro), vá e faça. A frase, ainda que não objetivamente, não considera o pré-requisito de estar falando com um escritor. É bem provável que ela esteja fora de seu contexto original e neste contexto ela estivesse, sim, referindo-se aos escritores. No entanto -- e talvez isto negue esta hipótese --, ela carrega em si uma equivalência extremamente prática no grande abismo que, sabemos, existe entre ler um livro e escrever um livro. Ignorando isto, a frase, em sua simplicidade e desconsiderando-se qualquer outra contextualização, estabelece que se você não encontrou aquilo o que gostaria de ler, vá e escreva. Simples assim.

Mesmo que não fosse esta sua intenção, esta desmitificação da escrita me remete à maneira como Julio Cortázar também costumava encará-la. Quem cai de pára-quedas em um de seus livros e se vê imerso na certa complexidade de apreensão de alguns de seus contos, pode ter dificuldade para crer na leveza com que o autor encarava seu ofício. Ele costumava relacionar o prazer possibilitado pela escrita com o divertimento de uma criança entretida com seus jogos. 

Não à toa a noção de jogo sempre foi algo tão caro ao argentino, explorando formas que remetem à brincadeiras infantis -- de maneira amplamente conhecida em O Jogo da Amarelinha -- ou em contos cuja trama gira em torno de espécies de jogos a que adultos se submetem. Um exemplo claro disto é "Manuscrito encontrado num bolso", em que duas das obsessões do autor são colocadas lado a lado: o jogo e os trens subterrâneos, os metrôs. Neste conto, o protagonista cria uma série de rígidos requisitos para abordar mulheres pelas quais se interessa nas suas viagens de metrô. Entre os mais simples está a troca de olhares através do reflexo das janelas, tornando-se mais complexo à medida em que envolve a necessidade de que a mulher faça as conexões entre as linhas do metrô pré-determinadas por ele, ou desça na estação que ele gostaria que ela descesse para que o jogo se complete. A impossibilidade de suas combinações serem todas contempladas o envolve em uma angústia constante que se amarra de maneira perfeita ao título do conto (e compreender o título do conto é ter em mãos a frase final não-dita).

Escrever é um processo sempre cheio de incertezas e inseguranças. Você está constantemente sendo traído por sua herança de leituras e por um ser invisível lhe sussurrando que o mundo não precisa de mais um livro. Que você não precisa escrever mais um livro -- olhe quantos livros há na sua estante que você ainda nem leu. E quantos livros há no mundo! São processos normais da criação literária, mas que potencializam sua ação principalmente durante a escrita de um romance. É uma jornada longa, repleta de idas e vindas, do quase sempre irrefreável hábito de se voltar à primeira frase para verificar se é impactante o suficiente, se é fluida o suficiente, se é sedutora o suficiente. 

Para encarar seriamente a escrita de ficção é preciso ser tomado por uma crença inabalável da necessidade de que seu livro exista. Nem que seja para você mesmo. E quando esta crença se fortalece, tudo parece até bastante óbvio: é claro que seu livro é necessário, ninguém escreve como você pelo simples fato de que ninguém tem a sua voz literária. Então, seguindo o simples e direto conselho de Neil Gaiman, termine o que você está escrevendo. Faça o que for preciso para terminar. Porque para ler a história que você ainda não leu -- e sabe que não foi escrita, pois ela é sua -- é preciso escrevê-la.