17 janeiro 2003

Das nuances do conto

Edgar Allan Poe estabelece que a gênese do bom conto deve partir de um efeito único a ser atingido e assim ir acomodando os acontecimentos de forma a satisfazê-lo, insistindo na regularidade e eficiência que deverão manter a atenção do leitor e de um único eixo dramático, não permitindo intervenções, comentários e descrições quando desnecessários. Ele visa a um objetivo único, ímutável, caminha em direção a uma luz sem propósitos de alterações que possam vir a confundir o leitor a respeito da proposta inicial do autor. Poe estabelece uma situação inicial e a partir dela trabalha de forma concentrada situações capazes de criar o suspense no leitor conduzindo-o até o clímax. Para Poe, isto é o necessário para o escritor do conto atingir seus objetivos. Já Julio Cortázar, no ensaio Alguns aspectos do conto[publicado no livro "Valise de Cronópio" da editora Perspectiva], nos diz que os contos de Tchekov visam apresentar algo que está além do conto em si, tanto antes como depois.Muito além do fato narrado, escondem-se outros fatores que devem ser destrinchados pelo leitor. Utilizando como exemplo o conto "O bilhete de loteria", onde a tensão está concentrada em Ivan Dmitritchi e sua esposa que imaginam terem ganho o prêmio da loteria. Durante o conto a ação é praticamente nula, apenas com os dois se observando e imaginando o que fazer com o dinheiro, porém quando certificam-se de que não ganharam nada, voltam-se para a realidade. Não há nada além disso se pensarmos de acordo com a teoria de Poe, mas de acordo com o pensamento de Cortázar sobre a obra de Tchekov as coisas se passariam de modo diferente. O que seria, então, esta outra intenção?Existem subterfúgios diversos, possibilidades mil de se esconder as diversas nuances existentes em um conto. Ou de contá-las da maneira mais fascinante possível, deixando ao leitor o intrincado jogo de revelação sobre o que de fato ele representa. Em uma palestra para escritores cubanos da Revolução, Cortázar discorreu sobre sua maneira de olhar para o conto. Para ele,a função de um conto é quebrar seus próprios limites para ir muito além da pequena história que narra. E neste quesito, a escolha do tema se torna imprescindível como ato de criação. Cortázar defende que o tema deve ser uma condição primordial para o contista esmiuçar sua história de maneira aglutinante e mais vasta que um mero argumento. E para isto, é necessário uma total dedicação e motivação com o assunto a ser retratado, caso contrário, o conto já nasce completamente comprometido. Dedicação, conhecimento - o esmiuçar do tema escolhido, procurando retirar do conto, desde a sua proposta de escrita, todos os diferentes ângulos de análise possível ou apresentar um, deixando para o leitor as possibilidades interpretativas de todos os outros existentes.