30 setembro 2003

IRREVERSÍVEL DOR

Já ouvi quem acusasse o cinema europeu de utilizar-se de recursos extremos a fim de ganhar mídia gratuita para seus filmes, sem que estes se fizessem merecidos. Assim, a dose exagerada de sexo e violência em alguns destes filmes seriam uma tentativa de angariar comentários e publicidade: a polêmica pela polêmica. Conclusões como estas seriam tremendamente injustas com um filme como Irreversível(Irréversible, França, 2002), de Gaspar Noé.


A verdade é que o filme de Noé, com a maravilhosa Monica Bellucci é um verdadeiro soco no estômago tanto para espectadores mais sensíveis quanto aos que acham que já suportaram tudo em matéria de violência explícita no cinema. E aos que acham que nada pode ser mais violento do que crianças que atiram em outras crianças, como em Cidade de Deus, ou aos acostumados freqüentadores de sessões de filmes norte americanos, em que a metralhadora que rotaciona e destrói centenas de “inimigos” já é considerada pouca coisa, ser conduzido a um mergulho no que a violência tem de mais humano e palpável realmente é um exercício para poucos. Mas que não deve de maneira nenhuma ser desprezado.


Ainda que tenha se alardeado que Irreversível tenha sido o causador das mais fortes reações de público no último Festival de Cannes, quando concorreu na premiação oficial – diz-se que espectadores e críticos saíram na primeira meia hora de filme, enquanto outros vomitavam e desmaiavam pelos corredores -, e mesmo que isto contribua de maneira gigantesca para o já caráter de cult a que filmes assim acabam se rotulando, nenhum comentário ou tentativa de descrição pode ser mais forte do que a experiência de presenciar a violência e a estupidez desmedida que podem manchar os homens e tornar um dia que tinha tudo para converter-se em uma doce experiência cotidiana em uma entrada para a dor e o sofrimento.


Além de Monica Bellucci, o filme é protagonizado por Vincent Cassel (seu marido na vida real, que faz Marcus, seu namorado no filme) e Albert Dupontel (Pierre, ex-namorado de Alex, personagem de Monica). No início do filme – que é contado, como Amnésia, de trás para frente, embora de uma maneira mais clara -, portanto, no final, um dos personagens diz “O tempo destrói tudo”. Na seqüência seguinte, vemos Marcus e Pierre imersos nos becos escuros e sórdidos de uma boate gay muito barra pesada, atrás de um cafetão chamado Le Tênia (Jo Prestia). O diretor tenta desconstruir as imagens de sexo e masturbação que ocorrem conforme eles passam pelos recônditos da boate com uma câmera confusa, com uma iluminação escura e com a trilha constante de freqüências de ultra-som, utilizada para dispersar multidões. A tensão é constante, e atinge seu ápice quando, uma vez tendo encontrado o cafetão, Pierre desfere repetidos golpes com um extintor de incêndio na cara do sujeito, até desfigurá-lo por completo, sendo acompanhado inclementemente pela câmera que registra uma das cenas de violência mais pavorosas já vistas no cinema. Ainda que todo o clima que introduz tal seqüência tenha contribuído para a tensão que emerge neste momento, é somente acompanhando o restante que nos damos conta do que os levou até ali e os expôs em tal situação-limite.


Conforme o filme prossegue, chegamos à cena desencadeadora da fúria que o cafetão Le Ténia despertou nos dois protagonistas e vemos a antecipação daquele ato. Saindo de uma festa onde estava com Marcus e Pierre, Alex decide ir embora sozinha para casa quando se aborrece com Marcus, que se entope de drogas e se comporta como um verdadeiro idiota. Ainda que a imbecilidade da personagem tenha sido tremenda, ao sair sozinha de uma festa, com um vestido colado ao corpo, e atravessar uma passagem subterrânea sem um motivo aparentemente convincente, é um extremo suplício presenciar à cena de estupro de Monica Bellucci. Filmado em plano-seqüência, por cerca de intermináveis oito ou dez minutos, a personagem é submetida à penetração anal pelo asqueroso traficante ao presenciar este surrando um travesti. Como se isto não bastasse, Alex é espancada com uma brutalidade ainda mais chocante logo em seguida. Como vimos antes, assim como Marcus e Pierre, o resultado do espancamento, com Alex sendo socorrida por médicos e policiais na rua, não há como não revirar-se na cadeira a procura de alguma posição que possa aliviar, ao menos momentaneamente, a sensação de desconforto e a possibilidade de algo semelhante acontecer em nossas vidas.


E é sobre a inconstância das certezas diárias que o resto do filme versa. Transmitido tanto pelos estranhos sonhos que Alex confessa ter tido, como pelas próprias frases proferidas pelos personagens conforme o filme vai se amenizando e ganhando belas cenas, como o acordar dos amantes Marcus e Alex, entremeado de carinhos que nem supõem o amargo que o fim do dia lhes reserva – e, a medida que isto acontece, nos ocorre duas sensações diferentes: a tranqüilidade pelo doce começo do dia dos personagens, e o desespero, por saber onde o final do seu dia os irá levar. As cenas passam a se encaixar com mais nitidez, as cores claras tomam conta da tela e a revelação mais chocante e que torna tudo mais aterrador ainda, se declara no final.


A sensação de fazermos parte de alguma espécie de jogo pré-determinado, ao qual não temos domínio, ou pior, que nossas ações nos fazem caminhar inexoravelmente para uma séria de conseqüências sobre as quais não temos controle, nos faz sentir como meros joguetes de um tabuleiro manipulado por uma vontade maior.


Filmes como estes servem para nos questionar a respeito dos limites do cinema. Levantam questões que fazem enlouquecer aos críticos mais conservadores e nos inquirem sobre o que é passível de ser assistido, afinal, em uma tela. Ao mesmo tempo em que choca e parece gratuito e manipulador, por vezes, serve como um tapa na cara e um convite à vida real. Propostas muito além do mero entretenimento. Ainda que pareça contraditório que a arte esteja fazendo o apelo para que se preste muito mais atenção à realidade, imersões como estas são como fuga do anestésico: tornam mais claro o mundo à nossa volta e nos permitem um outro olhar – ainda que doído e repleto de perplexidade e desesperança com o mundo – sobre as coisas que nos rodeiam.