05 maio 2005

No tempo desta história

A história começa com duas antigas atrizes do cinema nacional. Da época do cinema mais marginalizado, responsável pela produção de preciosidades de duplo sentido, capazes de levar hordas de solteiros ao cinema para assistir realizações de gosto tão duvidoso quanto sua qualidade técnica. Do tempo em que críticos mais do que torciam o nariz ao que quer que fosse filmado em terras tupiniquins. Longe de expressões do tipo “cosmética da fome” e quetais. Ainda muito distante da descoberta da classe social mais baixa brasileira como exemplo do personagem ideal do “cinema da retomada”. As duas atrizes, inclusive, não mantiveram sua senilidade em doses suficientes para entender o que se passa em nosso tempo no quesito cinema. Por que, ao começo desta história, as duas atrizes estão velhas e ressequidas, velhas e maltratadas, velhas e pobres e feias e atiradas em um canto qualquer que o último dos executivos de um antigo estúdio de cinema nacional conseguiu lhes arranjar, a título de “reconhecimento artístico” a dois grandes cânones do cinema alternativo brasileiro.

A história é cheia de expressões em aspas.

Por que a história, que começa focando estas duas atrizes, apela para doses fartas de ironia.

Por que as duas atrizes revelam papadas sob suas pálpebras que se assemelham a flácidas bolsas de água quente e se solidarizam na divisão comunitária da cesta de alimentos que mais uma vez lhes chegou à porta de seu pequeno apartamento.

No tempo desta história, as duas atrizes não têm mais quem se lembre de seus feitos. Pouco dos seus feitos elas mesmas se lembram. Recordam dos diálogos não monumentais, da pouca dificuldade em decorar seus textos e das cenas repletas de expressões fingidas de prazer e da facilidade com que se entregavam sem grandes frescuras ao que ficou, preconceituosamente denominado, “putaria”. As duas atrizes relembram da distância que tomaram de suas família quando seus primeiros filmes tomaram de assalto os grandes cinemas de bairro, na época em que ainda havia grandes cinemas de bairro, à beira das calçadas, onde se podia vê-las nos cartazes com convenientes tarjas vermelhas na linha abaixo da cintura. Elas se divertem, ainda que estejam longínquos os dias em que podiam rir sem que lhes doesse o maxilar superior pelo esgarçar em excesso, e lembram da pouca pretensão em suas carreiras de atrizes. Recordam como todo o resto de seus dias era dividido pela trabalhosa dúvida de optar pela festa de qual grande estúdio na casa de qual grande figurão iriam terminar a noite.

Nos dias em que são contadas estas histórias, as atrizes lembram desta época de bonança e de festividade sem fim enquanto trituram os farelos de bolacha que ainda têm força para mastigar.

Para deixar a história mais emocionante, para que seja pungente o nível de sentimentalismo que posso aplicar a esta narrativa para cativar ainda mais o encantado público leitor, posso dizer que no tempo desta história as duas velhas atrizes só têm uma a outra, que todos os seus descendentes se distanciaram depois do tempo hábil que tiveram para dilapidar os ganhos destas duas velhas atrizes. Por que lhes pareceria imoral demais viver os seus dias perto de duas velhas atrizes que protagonizaram produções com nomes tão impróprios quanto “Vem que é bom por trás” e “Caindo de boca”, por mais que hoje tudo pudesse ser visto com o devido distanciamento crítico que o tempo é capaz de impor. Por mais que pudessem rir com os amigos, lembrando que beleza que eram as coxas das duas velhas atrizes naqueles idos e saudosos anos do cinema nacional. Por mais que pudessem ironizar a falsidade nos rostos daquelas duas velhas atrizes ao protagonizar cenas em que o desejo sexual de suas personagens deveria ser enfatizado por gemidos e prazerosas expressões de contentamento.

No tempo desta história, as duas velhas atrizes não mais remoem amargura por não ter notícias de seus filhos, por não lembrar que idade tem seus netos e por não saber a cor do cabelo de suas noras. Por que no tempo desta história, as duas velhas atrizes riem de boca aberta enquanto assistem aos programas de domingo na televisão, lamentam a falta de dinheiro para comprar um videocassete e rever os filmes de suas épocas e vão dormir cedo por que lhes dói a bacia por culpa daquele sofá velho em que sentam para assistir à televisão.

Ao iniciar a narrativa desta história, as duas velhas atrizes recém acordaram. Levantam ao mesmo tempo, tomam o chá juntas e pensam no que vão fazer no resto do seu dia. Então decido que depois de lavar as xícaras sujas, uma das atrizes cai de mau jeito e fratura a bacia. E a outra atriz sente um estranho aperto no coração.

Publicado originalmente no Simplicíssimo.