Tratado pessimista sobre a humanidade
Embora desde as primeiras linhas a corrosiva linguagem de Pierre Mérot torne claro o seu exercício em desfiar um corolário de impressões ácidas e amargas sobre a humanidade, as instituições e toda forma de relacionamento, é na página 153 de Mamíferos, primeiro livro do autor publicado no Brasil, pela Cia. das Letras, que talvez possamos nos dar conta mais intensamente da crueldade do narrador de Mérot sobre os sofrimentos e imperfeições humanas.
Diz o narrador a respeito dos três filhos de uma das tantas mulheres derrotadas com que “o tio” – personagem central do livro – se envolve depois de mais uma de suas noites de bebedeira: “(...)A mais velha tem doze anos e faz xixi na cama. É inteligente e desleixada. O terceiro filho é autista ou algo do gênero. Ele teima em acreditar que dois e dois são cinco. Sangra o tempo todo pelo nariz, geralmente no meio da noite. É um cristo de dez anos, o centro doloroso da família, o sintoma mais visível. Seria bom que a caçulinha não fosse asmática. Infelizmente é.”
Esta é uma amostra bastante elucidativa sobre como o sofrimento humano se mostra motivo de riso em qualquer situação para o narrador. E olha que até chegarmos à página 153 já passamos por um caudaloso desfile de considerações as mais cáusticas possíveis sobre toda ordem de princípio pré-estabelecido. Em todo o livro não há a menor pausa para condescendências ou pequenas doses de otimismo, por menor que sejam.
“O tio”, o anti-herói aqui retratado é um fracassado de 40 anos que habita um apartamento de 30 metros quadrados, é o refugo de sua própria família – esta, a caricatura de uma sociedade, entidade cujo fim não é nem de longe a felicidade de seus membros. “O tio” é um derrotado por escolha própria que freqüenta bares para se encharcar de álcool, levar para a cama solteironas bêbadas cheias de filhos e masturbá-las com a escova dental elétrica de seus rebentos. É um derrotado por escolha por que “o tio” não é um débil mental, é um sujeito repleto de dotes intelectuais, cuja única diversão, no entanto, parece ser torpedear tudo à sua volta. Por isso se confunde com o próprio narrador, ser onisciente que também toma para si os princípios e identificações comportamentais do personagem. Aqui se nota o difícil enquadramento da obra como “romance” – sua linha estilística de experimentação circula por vezes pelo ensaio, refletindo sobre a crise social e espiritual da humanidade; e por vezes emana a autobiografia, com seus tom insolentemente franco adotando vez ou outra o aspecto de um relatório clínico.
E deste relatório nada parece ser poupado: a democracia, as mulheres, o sistema de ensino, a psiquiatria, o serviço público, os editores e, claro, o casamento e a família. Tudo é trucidado sob imenso cinismo do personagem, interessado em destruir o menor sentimento edificante. No entanto, o “o tio” adora os perdedores, os humilhados, os feridos de todo tipo, os órfãos (aqui cabe uma pausa para que a crítica possa comparar Mérot à Bukowski e inseri-lo na vala dos “marginais” interessados em transmutar em peças literárias as situações mais sórdidas).
O que acontece é que, não obstante a adoração do tio por estes tipos e sua abominação por uma sociedade na qual – queira ou não – está profundamente inserido, “o tio” mantém o tempo inteiro uma aura de superioridade em relação aos seus semelhantes – motivo mais do que suficiente para desde já desatrelar o autor desta comparação aos personagens de Bukowski, se bem que para alguns basta que a trama recenda a álcool, com algumas descrições de sexo e escatologias para ser atirado no mesmo panteão. No entanto, “o tio” tem domínio e consciência de sua altivez intelectual – freqüenta o meio educacional, ridicularizado ao extremo por seus métodos de pedagogia progressista, e se torna uma “puta especialista” – e é orgulhoso de suas pequenas liberdades, de suas incursões embriagadas aos redutos sórdidos dos perdedores, de seus “suicídios afetivos”: as tentativas de ficar muito tempo com um ser que lhe dá pouquíssima satisfação. Mesmo assim, “o tio” parece nunca fazer totalmente parte daquele inferno, só permanecendo nele por opção.
Assim como o tio, na realidade portador de um impulso incontrolável à transgressão, o que temos em “Mamíferos” é a necessidade à qualquer custo de soar politicamente incorreto, insolente e chocante à todo momento. Por isso, em diversas vezes, notamos mais claramente o estilo de Mérot se tornando maior do que o próprio livro, impondo-se ao narrador, principalmente nas páginas finais do livro, com o narrador se dirigindo ao leitor – um texto na segunda pessoa que desfila um catecismo de “verdades definitivas” – convertendo-o no próprio tio, depositário final das certeza de que o que já esta falido só tende a piorar.
Embora desde as primeiras linhas a corrosiva linguagem de Pierre Mérot torne claro o seu exercício em desfiar um corolário de impressões ácidas e amargas sobre a humanidade, as instituições e toda forma de relacionamento, é na página 153 de Mamíferos, primeiro livro do autor publicado no Brasil, pela Cia. das Letras, que talvez possamos nos dar conta mais intensamente da crueldade do narrador de Mérot sobre os sofrimentos e imperfeições humanas.
Diz o narrador a respeito dos três filhos de uma das tantas mulheres derrotadas com que “o tio” – personagem central do livro – se envolve depois de mais uma de suas noites de bebedeira: “(...)A mais velha tem doze anos e faz xixi na cama. É inteligente e desleixada. O terceiro filho é autista ou algo do gênero. Ele teima em acreditar que dois e dois são cinco. Sangra o tempo todo pelo nariz, geralmente no meio da noite. É um cristo de dez anos, o centro doloroso da família, o sintoma mais visível. Seria bom que a caçulinha não fosse asmática. Infelizmente é.”
Esta é uma amostra bastante elucidativa sobre como o sofrimento humano se mostra motivo de riso em qualquer situação para o narrador. E olha que até chegarmos à página 153 já passamos por um caudaloso desfile de considerações as mais cáusticas possíveis sobre toda ordem de princípio pré-estabelecido. Em todo o livro não há a menor pausa para condescendências ou pequenas doses de otimismo, por menor que sejam.
“O tio”, o anti-herói aqui retratado é um fracassado de 40 anos que habita um apartamento de 30 metros quadrados, é o refugo de sua própria família – esta, a caricatura de uma sociedade, entidade cujo fim não é nem de longe a felicidade de seus membros. “O tio” é um derrotado por escolha própria que freqüenta bares para se encharcar de álcool, levar para a cama solteironas bêbadas cheias de filhos e masturbá-las com a escova dental elétrica de seus rebentos. É um derrotado por escolha por que “o tio” não é um débil mental, é um sujeito repleto de dotes intelectuais, cuja única diversão, no entanto, parece ser torpedear tudo à sua volta. Por isso se confunde com o próprio narrador, ser onisciente que também toma para si os princípios e identificações comportamentais do personagem. Aqui se nota o difícil enquadramento da obra como “romance” – sua linha estilística de experimentação circula por vezes pelo ensaio, refletindo sobre a crise social e espiritual da humanidade; e por vezes emana a autobiografia, com seus tom insolentemente franco adotando vez ou outra o aspecto de um relatório clínico.
E deste relatório nada parece ser poupado: a democracia, as mulheres, o sistema de ensino, a psiquiatria, o serviço público, os editores e, claro, o casamento e a família. Tudo é trucidado sob imenso cinismo do personagem, interessado em destruir o menor sentimento edificante. No entanto, o “o tio” adora os perdedores, os humilhados, os feridos de todo tipo, os órfãos (aqui cabe uma pausa para que a crítica possa comparar Mérot à Bukowski e inseri-lo na vala dos “marginais” interessados em transmutar em peças literárias as situações mais sórdidas).
O que acontece é que, não obstante a adoração do tio por estes tipos e sua abominação por uma sociedade na qual – queira ou não – está profundamente inserido, “o tio” mantém o tempo inteiro uma aura de superioridade em relação aos seus semelhantes – motivo mais do que suficiente para desde já desatrelar o autor desta comparação aos personagens de Bukowski, se bem que para alguns basta que a trama recenda a álcool, com algumas descrições de sexo e escatologias para ser atirado no mesmo panteão. No entanto, “o tio” tem domínio e consciência de sua altivez intelectual – freqüenta o meio educacional, ridicularizado ao extremo por seus métodos de pedagogia progressista, e se torna uma “puta especialista” – e é orgulhoso de suas pequenas liberdades, de suas incursões embriagadas aos redutos sórdidos dos perdedores, de seus “suicídios afetivos”: as tentativas de ficar muito tempo com um ser que lhe dá pouquíssima satisfação. Mesmo assim, “o tio” parece nunca fazer totalmente parte daquele inferno, só permanecendo nele por opção.
Assim como o tio, na realidade portador de um impulso incontrolável à transgressão, o que temos em “Mamíferos” é a necessidade à qualquer custo de soar politicamente incorreto, insolente e chocante à todo momento. Por isso, em diversas vezes, notamos mais claramente o estilo de Mérot se tornando maior do que o próprio livro, impondo-se ao narrador, principalmente nas páginas finais do livro, com o narrador se dirigindo ao leitor – um texto na segunda pessoa que desfila um catecismo de “verdades definitivas” – convertendo-o no próprio tio, depositário final das certeza de que o que já esta falido só tende a piorar.