20 novembro 2009

Sobre amar e odiar um pai


Um trabalho árduo que levou em torno de sete anos, envolvendo histórias nada agradáveis sobre seu pai e contextualizando uma família abalada por diversos episódios envolvendo sexo, morte e perda. Em uma definição bastante reducionista, isto é Fun Home, graphic novel da americana Alison Bechdel. Ainda que continuamente (e inevitavelmente?) o trabalho seja resumido às suas questões da homossexualidade, seria bastante injusto encerrar a importância desta obra tão somente nisto. É bom que se esclareça, portanto, sua trama.

Em Fun Home, a quadrinista Alison Bechdel mergulha em pesadas memórias de infância para contar a história de sua família. Neste emaranhado, considere os seguintes elementos: a fase infantil envolvendo brincadeiras com os irmãos em uma casa funerária pertencente à família, às voltas com um pai adorador em excesso de decoração, jardinagem e literatura clássica - acrescente aí uma obsessão por Scott Fitzgerald - e uma mãe resignada, que prefere se enfurnar em sua tese de mestrado e seus exercícios de dramaturgia amadora. Elementos suficientes para a criação de um belo drama familiar ou um dramalhão lacrimoso. Felizes somos que a autora tenha conseguido, magistralmente, compor uma obra que, sem dúvida, se enquadra na primeira definição. Porque, além dos elementos já citados, vamos incluir os que têm contribuído para definir muitas vezes o livro de Bechdel como uma obra que leva "homossexualidade e morte às HQs": na adolescência, Alison descobre-se lésbica, o que faz com que sua mãe conte que seu pai, Bruce, é gay - pai este que morrerá de forma violenta três meses depois deste manancial de revelações. O resultado disto transformado em quadrinhos é tão bem construído que a autora ganhou em 2007 com ele o Prêmio Eisner.



Muitos são os fatores que contribuem para fazer de Fun Home uma obra tão delicada e sofisticada em sua elaboração, sem entender por sofisticação recursos gratuitos e pretensamente intelectuais que a obra teria todos os motivos para conter. Sim, porque há ali a inserção de muita referência literária, citações por vezes claras e creditadas e por vezes sutis, a obras de Proust, Joyce, Camus, entre outros. Nunca gratuitas, deixemos isto bem claro. Já seria rebuscado o bastante se a autora o fizesse como elemento de estruturação de sua trama, mas as mesmas ainda se justificam pelo fato de terem feito parte da formação intelectual da família, presentes nas estantes vitorianas da clássica biblioteca de seu pai. Um pai que reunia uma séria de ocupações que, desde já, asseguram sua presença no panteão de ótimos personagens para se construir. Senão vejamos: professor de inglês e literatura, também trabalhava como embalsamador da funerária da pequena cidade onde viviam, uma empresa que era uma herança familiar. Desta segunda ocupação surge o título da HQ, Fun Home (casa da diversão), contração de Funeral Home (casa funerária). Não bastasse isto, sua grande paixão também era restaurar casas e mesetas de arquitetura clássica - o que fazia, em sua comunidade - e cuidar de jardins, com um conhecimento apurado sobre plantas e flores. "Uma bicha", como define a própria Bechdel em um dos quadrinhos.

Alison Bechdel escreve e desenha a tira Dykes to Watch Out For (algo como “Sapatas para ficar de olho”), desde 1983, em publicações gays. É fato que, com Fun Home, seu espectro de admiradores se ampliou intensamente, uma vez que o mesmo - e isto é bom que seja repetido - não se concentra em uma abordagem sexual, investigando causas e motivações para a homossexualidade de pai e filha. A obra trata de contar a história de uma família. E para isto a autora mergulhou fundo na investigação de cartas, documentos, registros policiais entre outros. Incluindo aí as histórias contadas por sua própria mãe, apoiadora em uma primeiro momento da decisão da filha em contar a história da família, mas que se confessou traída com certos segredos ali revelados.



Escolhida pela Time Magazine como melhor livro de 2006, nunca concentra um olhar simplista pela história que aborda. Assim também é vista a morte violenta de seu pai, atropelado em uma rodovia enquanto trabalhava em um jardim - por vezes a autora é fatídica ao enunciar tratar-se de suicídio; outras, deixa somente a nebulosidade por um talvez terrível acidente: todas suposições largadas a partir dos diversos aspectos da vida do pai que a autora apresenta. A narrativa se dá como as lembranças surgem em nossa memórias, de forma não linear, adiantando-se e recuando nas histórias de sua família. São cruzamentos que a autora faz entre as diversas fases da sua vida, indo e vindo em constantes elucubrações e conclusões, apoiando-se em cartas, fotografias e toda sorte de elementos que, como uma detetive, utilizou para registrar a história. Esta forma não-linear de cruzamento de histórias mostra-se extremamente eficaz para aliar a elas obras literárias cujos aspectos estéticos compartilham com sua própria história ou foram peças de formação que construíram seu caráter e de seu pai.

Narrativamente, Fun Home, se utiliza do voice off: frases no alto dos quadros que explicam o que está sendo mostrado na cena. Diferente do comumente aplicado em hqs, aqui a utilização dos balões é reduzida enquanto prática de elaboração de diálogos completos, servindo mais como pontuação de frases. O que Alison consegue, entretanto, usando este recurso considerado no cinema como forma pobre de narração, é evitar a redundância que comumente este show and tell me poderia (e quase sempre o faz) possibilitar. A narrativa escrita se complementa à narrativa desenhada, não a explica. Assim, a autora pode - e faz muito - uso da ironia entre o que está sendo dito e o que está sendo mostrado, criando um jogo de contraposições rico (e por vezes cruel) o bastante para enunciar lembranças dolorosas e mórbidas, motrando cenas líricas e cândidas - e vice-versa. O cuidado com a linguagem - escrita e desenhada - é tão preciso que, mesmo na sua sagacidade, a autora nunca resvala para o cinismo que uma história tão repleta de mágoa poderia suscitar.

Graficamente, a autora tem um estilo de traço que remete a Robert Crumb - refinado e realista, preciso na medida para construir personagens com quem nos importamos e que são tão claros em seus sentimentos, mesmo em se tratando de um cartum. Em preto e branco, somente fazendo concessões ao azul para quebrar a monotonia. Em Fun Home, Alison Bechdel se empenha genialmente em juntar pedaços a fim de construir também sua própria personalidade. Analisando com amor e ódio uma figura tão contraditória quanto seu próprio pai, a autora também constrói e descobre sobre sua própria formação, o quanto uma família disfuncional contribui para fazer dela quem ela é.