Sinapses #11: Literatura e levedura
349 anos atrás. Um tempo tão cinerário que, naquele quase inimaginável 1664, a França ainda era um Estado pertencente ao então Sacro Império Romano-Germânico, espécie de joint venture que abarcava grande parte dos territórios de uma Europa Central recém saída das fraldas do feudalismo. E foi na cidade de Strasbourg — em uma Idade “Moderna” de elmos, armaduras e lanças — que nasceu a Kronenbourg Brewery e sua primeira cerveja. Obra do recém-certificado Mestre Cervejeiro Jérôme Hatt, a Kronenbourg 1664, desde sempre simbolizou superioridade e requinte, fatores determinados principalmente pela presença do Strisselspalt em sua composição. Espécie de caviar dos lúpulos, seu baixo amargor e profundas qualidades aromáticas contribuiram para a criação de uma pale lager de gosto frutado persistente e extremamente suave. Características que a tornaram — e mantiveram, desde então — como a cerveja mais popular da França. Presente hoje em mais de 70 países, detentora de uma infinidade de prêmios, sua garrafa verde é um espetáculo de design à parte. Hoje a marca pertence ao Grupo Carlsberg e continua sendo personagem peculiar da França. Motivo pela qual a encontrei em um livro tão repleto de outros elementos francófonos:
“Passava os dias bebendo cerveja forte na frente do parque ao lado da Shakespeare and Company, algumas vezes na companhia de outros homens e sempre com um cão preto descarnado. Era possível avaliar seu estado de espírito a partir da cerveja que bebia. As lojas de Paris vendiam uma seleção padrão de seis tipos de latas de meio litro de cerveja. Havia a Heineken verde para o bebedor abastado; uma Kronenbourg com 4,5% de álcool para bebedores moderados; uma cerveja com 5,9% de álcool chamada 1664, que era a que nós da livraria preferíamos; e então, três níveis de cervejas muito fortes: uma lata vermelha com 8% de álcool, uma lata preta com 10% e uma lata especial verde-escura com 12%. Naquele dia, Richard estava bebendo uma lata vermelha, o que significava que estava com uma disposição razoável para com o mundo.”
Obra de não-ficção, como tudo, aliás, escrito pelo canadense
radicado na França, Jeremy Mercer, a obra Um livro por dia - Minha
temporada parisiense na Shakespeare and Company (Casa da Palavra,
2007, 320 páginas) narra aquela que é a utopia dos bibliófilos e amantes do
odor acolhedor que só se encontra em volumes de páginas prensadas em velhas
estantes: morar em uma livraria, repousando em meio a caracteres infinitos de
Prousts, Fitzgeralds e Machados. Porque foi isto o que fez este autor, fugido
no ano 2000 de seu país e indo refugiar-se com malas e quase sem dinheiro na
lendária livraria de Paris, a Shakespeare and Company. Definida por seu então
proprietário, George Whitmann, como “uma utopia socialista em forma de
livraria”, a Shakespeare and Company oferecia mais do que um chá e recomendação
de livros a seus frequentadores: era um teto para escritores em decadência
criativa ou sem lugar para ficar em Paris. Turistas curiosos, interessados nos
mitos franceses também eram bem-vindos para dividir espaço com volumes e mais
volumes de livros, sob a sentença (outra de Whitmann): “Não seja um mau
anfitrião para os estranhos, pois eles podem ser anjos disfarçados”. Em troca,
os hóspedes só precisavam ajudar nas tarefas diárias e cumprir uma inusitada
missão: escrever ali uma obra e — sabe-se lá como — ler um livro por dia.
Com requinte jornalístico,
Mercer relata os quatro meses passados na livraria, famosa na primeira metade
do século XX, quando ainda era de propriedade de Sylvia Bach, fechada em 1941 e
reaberta por Whitmann dez anos depois. Território de viajantes do mundo
inteiro, uns tantos atraídos por lendas como a de que Shakespeare teria morado
ali e outros interessados na aura de reais ilustres frequentadores do passado,
como Henry Miller, Anaïs Nin, Jack Kerouac e Allen Ginsberg.
No trecho em questão,
Mercer lamenta a instabilidade da vida da livraria. Demorando para entender o
estilo de pensamento livre de Whitmann, ele sai da Shakespeare and Company
enraivecido pelo sumiço de duas camisas suas e acaba envolvido pela postura filosófica
de um sem-teto bebedor de cervejas que o para na rua para perguntar “se ele
estava bem”.
Escritores em crises com
seus livros, poetas alcóolatras e viciados em haxixe, artistas plásticos
excêntricos. Todo tipo de gente passa pela vida de Mercer neste período em que
ele não leu um livro por dia, como sugere o título brasileiro, mas viveu
diferentes histórias diárias que teve a generosidade de dividir. Histórias
encravadas numa livraria de tradições seculares. E boas histórias, assim como
boas cervejas, nem séculos conseguem fazer desaparecer.
Publicado originalmente na HNB Mag.