02 agosto 2016

Cobain


Em agosto de 1987, Kurt Cobain leu no jornal sobre Gerald Arthur Friend, um sujeito que sequestrou, torturou e estuprou uma garota de 14 anos. Esta história deu origem à "Polly", uma das músicas do Nevermind, álbum do Nirvana que completará 25 anos do seu lançamento no dia 24 de setembro.



Na mesma data, este ano, será uma lançada uma coletânea da qual sou um dos organizadores e autores, Cobain. Uma reunião de 25 escritores com contos baseados em 25 músicas da banda (mais alguns bonus tracks), e que será disponibilizada, gratuitamente, em e-book.

Coube a mim o conto baseado na música "Polly". Um conto bastante difícil de ser escrito, porque todo o tema da música só contém elementos de sofrimento. Construí uma breve biografia para este psicopata, assim como para a menina e para alguns diversos personagens que auxiliam no desenvolvimento da história. Escrita pesada, mas cujo resultado me agrada bastante. Aqui, um trecho.


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Eram só duas garotas, mas o quer que pareciam conhecer escapava completamente a Arthur. Ele parou o carro à sombra da pequena árvore de jambolão, distância suficiente para deleitar-se com a grossa camada de brilho de morango nos lábios de Poli, uma película que se esticava com a elasticidade de uma cobertura de sorvete à cada vez que a menina comentava alguma coisa com a amiga. Havia  noites em que Artur se sentava na varanda do pequeno motel em que morava e ficava ouvindo o cantar das cigarras por entre o assovio fino dos pinheiros. O cheiro da noite era diferente, trazia o perfume quente do xampu de pêssego da vizinha da porta ao lado, espreitando-se por entre o vapor do banho e misturando-se ao odor do asfalto levantado pelos pesados caminhões que passavam por ali àquela hora. O xampu de pêssego o fazia lembrar da mãe e sua essência frutada, aquele composto nos cabelos ainda molhados com o qual podia ser vista sempre que se achava em condições de abrir a porta do trailer para que ele e Tom entrassem, depois de despachar o sujeito com o qual ficara trepando a manhã inteira enquanto ele estava na escola. Naquelas noites ele se punha a pensar que merecia uma espécie de recompensa, um benefício adicional que o fato de nunca mais ter ouvido falar da mãe nunca lhe trouxera. Cada vez que encarava os lábios de uma menina, uma menina como Poli, parecia que encontrava este benefício adicional. A efemeridade da recompensa, no entanto, o frustrava —  o frustrava ter que contar com a fortuidade de encontrar algo assim nas lojas de conveniências, nos centros comerciais, praças, supermercados. Precisava daquilo para sempre, e sentir aquilo, a viscosidade e maciez daqueles lábios, sob um olhar que ia encará-lo e resfolegar sob seu peso, e gemer e pedir para aliviar um pouco, aquele olhar que diria que estava pronta para mais uma, pronta para consumi-lo como consumia o brilho labial que devia ter gosto de morango.