29 março 2007



“Lá não tem claro-escuro / A luz é dura / A chapa é quente / Que futuro tem / Aquela gente toda / Perdido em ti / Eu ando em roda / É pau, é pedra / É fim de linha / É lenha, é fogo, é foda”



São 22h53, eu vejo no meu relógio, quando Chico Buarque pergunta:

- Vamos ao samba?

E vem a prova definitiva de um artista que ladeia a qualidade de canções de melodia e letras irreparáveis com a popularidade que leva uma multidão ao delírio, ao som de clássicas que não podem faltar no seu bis. E segue uma rodada: “Sem Compromisso”, “Deixa Menina”, “Quem te Viu, Quem te Vê”, fechando a noite com a delicada “João e Maria”. O saudosismo dos fãs foi atendido, a “descoberta” dos temporões como eu, plenamente saciada, e o show pode chegar ao fim, enquanto o público deixa as fileiras emocionado. Embora, quando se junte um público de mais de 1,7 mil pessoas para um show de um artista como Chico Buarque, seja mais conveniente chamá-los de devotos do que propriamente de público. Afinal, estão lá todas as senhoras românticas e apaixonadas, que gritam despudoradamente “Chico, eu te amo!”, enquanto o carioca se prepara para dedilhar mais uma de suas belas canções.

Eu me encontro não como corpo estranho – seria exagero dizer - no meio deste séquito, em um Teatro do Sesi lotado em uma noite de quarta-feira terrivelmente quente. Na verdade estou lá como o sortudo, descobridor temporão de um Chico Buarque sobre o qual não tenho pudores de chamar de perfeito em um disco chamado “Carioca”, seu último filho, motivo da série de shows que vão até domingo(!!), todos lotados (!!!), com ingressos esgotados desde a primeira semana de vendas (!!!!). Logo, sou ou não sou um sortudo por ter tido a dádiva oportuna de receber aos meus ouvidos a audição de “Carioca” em um momento em que tudo o que eu tinha era a opinião mais ou menos lugar-comum de que Chico Buarque é um fenômeno musical acima do bem e do mal, um conceito por vezes tão vago (mas, convenhamos, praticamente indiscutível, em se tratando de um artista com a carga musical de Chico. O tipo de opinião que alinhava os seguidores dos mais diversificados gêneros musicas, com sensibilidade suficiente para reconhecer a qualidade do trabalho deste compositor e cantor) que mereceria uma imersão mais profunda de minha parte em sua obra, para conhecer tardiamente o que um público gigantesco já sabia a tanto tempo?

Mais sortudo ainda eu sou se considerarmos o seguinte pressuposto: devidamente motivado a ir ao seu show, ainda mais sabendo de um desconto possível a estudantes, qual não é a minha surpresa ao ver os ingressos esgotarem-se antes que eu pudesse pensar em soletrar ingressos esgotados? Expectativas frustradas, restava-me a audição incansável de “Carioca”, enfileirando “Subúrbio”, “Ela faz cinema”, “Ode aos ratos” e outros tantas maravilhas deste disco, no repeat do meu player. E eis que, por uma destas maravilhas do destino, quando a esperança de ir ao show era tão distante quanto uma cidadezinha afegã, no final da tarde de ontem meu chefe aqui na agência dispara o seguinte e-mail: “Tenho 6 ingressos para o show do Chico hoje, quem quer?”. Dou um reply com a velocidade da luz para receber um inebriante “Fechado: Alessandro,..., são os felizes ganhadores”. A noite, a semana, o mês, quiçá o ano, estão ganhos.

“Carioca” é, portanto, a minha entrada triunfal no universo de Chico Buarque. Eu, um tosco admirador de pérolas como “Vai Passar”, “A Banda”, “A Rita”, “Acorda amor”, “Anos dourados”, “Beatriz”, e, sim, todas estas outras que você está pensando, e que poderiam figurar em uma destas coletâneas da série Perfil. Mas independente disto, me orgulho desta iniciação em sua obra com “Carioca”. Um disco absurdo, de melodias e letras inacreditáveis e toda a série de adjetivos que é possível se justapor a um nome como Chico Buarque. Aí estão as homenagens, ou seja lá que nome se queira dar ao Rio de Janeiro. Afinal, quando Chico canta: ‘Vai, faz ouvir os acordes do choro-canção / Traz as cabrochas e a roda de samba / Dança teu funk, o rock / Forró, pagode, reggae / Teu hip-hop / Fala na língua do rap / Desbanca a outra / A tal que abusa / De ser tão maravilhosa’, está homenageando, sim, esta cidade que à revelia de todos os seus problemas é capaz de inspirar uma canção como esta. Mas a verdade é que mais do que falar do Rio, Chico quer ouvir o que o Rio tem a dizer: ‘Fala, Maré / Fala, Madureira / Fala, Pavuna / Fala Inhaúma / Cordovil, Pilares / Espalha a tuz voz / Nos arredores / Carrega a tua cruz / E os teus tambores’. Isso é “Subúrbio”, abrindo o disco.


E o show segue assim, intercalando às canções deste disco uma e outra clássica, para deleite das meninas que cantam junto levantando os bracinhos e ovacionando o Chico delicado, em “Imagina” e “Eu te Amo”, popular em “Bye Bye Brasil” e “Morena de Angola” transcendente em “Porque Era Ela, Porque Era Eu”, sofisticado em “As Vitrines” e “Morro Dois Irmãos”.


A banda, como não podia deixar de ser, é sensacional, com destaque para a percussão de Chico Batera, o violão do maestro, arranjador e diretor musical Luiz Claudio Ramos e a bateria inacreditável de Wilson da Neves, um dos bateristas mais importantes da música brasileira que tocou em discos de monstros como Sarah Vaughan, Elizeth Cardoso, Elis Regina, Roberto Carlos, Wilson Simonal e Elza Soares. Eu termino a noite agradecido, mesmo por esta descoberta tão tardia. Em melhor hora não poderia ser.