29 maio 2007

Cão


As cenas são de um despojamento quase idêntico ao diálogo, secos e de um portoalegrês que não incomoda. Afinal, aqui ele não é estilístico, não é registro forçado tatibitati do magrão descolado do Bom Fim. É somente (e precisa ser mais do que isto?) registro. Afinal, o personagem é da capital gaúcha, a história se passa toda aqui e nem com a mão de Beto Brant – ou, principalmente por isto – modifica isto. Não há a necessidade de se “abrasileirar” a linguagem nem se apaixonar demasiado por ela, como se quintessência da humanidade fosse. Na verdade, o registro bairrista que tanto nos orgulha e nos dá engulho é que o menos importa em “Cão sem dono”. Aqui o que importa é se a semi-vida de Ciro, o protagonista que já foi sem-nome do romance de Daniel Galera (“Até o dia em que o cão morreu”, Livros do Mal e Cia. das Letras), de onde o filme foi adaptado encontra verossimilhança, serve ao meio cinematográfico, desperta algum interesse como filme ou o que temos é somente uma trama arrastada de filosofia niilista. Por que nada parece fazer sentido para Ciro (Julio Andrade, em ótima atuação), um eventual tradutor do russo jogado em um apartamentinho furreco na avenida Borges de Medeiros, que vive mais da ajuda do seu pai em alimentar a sua falta de vontade/ambição/ de trabalhar e sustentar por si próprio. “Mas assim é fácil não ver sentido para a vida”, comentarão os mais exaltados, que verão no personagem somente o pequeno-burguês que pode se dar ao luxo de aguardar que a vida lhe apresente alguma motivação. Impossível não se dar alguma razão para isso: com apartamento pago pelo coroa é fácil recusar o trabalho de tradução que lhe renderá parcos reais por lauda. Mas a questão aqui não é entrar em méritos sociais ou qualquer discussão sobre a divisão de riquezas. Talvez seja impossível que este assunto não seja abordado em algum momento em uma mesa de bar. Provavelmente com a mesma falta de crença que assombrará os desavisados, que não entenderão o envolvimento de uma mulher como a modelo Marcela (Tainá Muller, em um registro muito correto: ótima estréia da atriz) com o nada interessante Ciro. Preconceitos à parte, pode soar pouco compreensível aos duros de coração que um sujeito com tão poucos aspectos admiráveis, total passividade em relação à vida (incapaz de dar nome a um cachorro) e alheamento que beira o vegetativo seja amealhado com a sorte de ter em sua vida a presença ensolarada de Marcela, modelo de carreira ascendente e com um leque de opções com certeza infinitamente mais atraentes do que ser tratada com descaso por um cara cansado demais até para ela. Cansado até certo ponto, é lógico. Em nenhum momento o sexo lhe parecerá prática dispensável em meio à sua semi-existência: aliás, a profusão dele pode até arrepiar os cabelos das senhoras pudicas (ao final da sessão,uma senhora me interpelou comentando a sucessão de cenas de “ação” do filme e assemelhando-o a uma película francesa), mas em sua defesa digo que ele nunca soa como elemento apelativo. É de extremo bom gosto, bem filmado e na verdade, é alternativa certeira para o quase-nada de Ciro. É o algo a mais que a vida começará a lhe oferecer e, se em um primeiro momento é sôfrego e desesperado como convém às paixões recentes e ao ímpeto da juventude, em seguida será cada vez mais repleto de carinhos e emoldurará com perfeição as mudanças tênues que surgirão na vida e no caráter de Ciro. É quando Marcela passa da parceira eventual de transas na sacada do apartamento à noite para aquela mulher que começa a despertar Ciro para um algo qualquer.


E é aqui que a coisa tende a ficar ôsca. Sim, por que se até então o despojamento das cenas, o naturalismo que a câmera parada e o visível improviso nas falas nos oferecem soam atraentes e realmente como pontos positivos do filme (é a falta de esquematismo neste primeiro momento que nos conquista: parece que estamos vendo um apanhado de cenas de conhecidos, registros filmados de uma intimidade que observamos, embora não soe intrusivo nosso vislumbrar sobre). Mas quando a paixão fulminante cai sobre Ciro, a mão boa de Brant ameaça fazer ruir tudo o que vinha construindo até então. O recurso parco e constrangedor do personagem lendo seus poeminhas bêbados em voice off é deveras dispensável e primário. É bem mais pungente e coerente sua noite de embriaguez com o novo amigo motoboy e até mesmo seu pedido desesperado e igualmente embriagado ao telefone. São o suficiente para marcar com clareza esta mudança de comportamento na vida de Ciro, a virada de roteiro que o trará de volta a vida.


Bom seria se tão somente o diretor continuasse a apostar no naturalismo das cenas para atingir seus objetivos. Cenas esparsas como Marcela cantando acompanhada de Ciro ao violão; Ciro em sua coloquial conversa com o porteiro pintor; o jantar com os amigos recentes; a conversa ao pé do ouvido entre uma transa e outra. A coisa do grande despertar para a paixão soaria igualmente natural e seu caminho para o final não esbarraria no ato de contradizer o quase método que o filme vinha seguindo até ali. Desta maneira, até o final extremamente redencionista (o mesmo mal de que sofre o romance) poderia encontrar uma solução um pouco menos piegas.