22 março 2009

Ficção de Polpa, volume 3

Além do mais não era a primeira vez que lhe acontecia, mas de qualquer maneira sempre tinha sido tia Dedé que lidara com os falatórios que surgiam, quase sempre não da maneira mais diplomática que seria esperada, mas afinal, o que se podia esperar de tia Dedé que conquistava a alguns, ela e Lucho, o cão feio como a morte que a seguia por todo lugar que fosse, e repugnava a outros? Embora houvesse os que não quisessem entrar no jogo, como seu Remi, o velho que morava no fim da quadra e cultivava as tulipas, havia outros que mais ostensivamente faziam questão de não disfarçar seu horror dramatúrgico, como Zulma, a pequena que atendia no caixa do açougue e entre um intervalo e outro, quando os cigarros e comentários sobre os episódios últimos dos desencontros amorosos de Mario e Celeste já também se tornavam por demais desinteressantes, era a primeira a lembrar-se das histórias, com um pudor velado que nem à dona Enrietta conseguia surtir efeito – “não quer dizer que eu acredite, mas se fosse verdade, que coisa horrível”. Todos falavam de Ignacio Pessoa mais uma vez e não porque os abscessos novamente lhe aflorassem – ou talvez porque sim, as coisas começaram a acontecer mais ou menos simultaneamente a isto, ou aconteciam cada vez que isto lhe surgia – mas porque estava próximo de Virgílio completar os três anos de idade.



Tá aí, então o trecho inicial de Pelo alívio dos enfermos, que vai estar na coletânea Ficção de Polpa, volume 3, da Não Editora, com previsão de lançamento para abril. Apesar de, certamente, não poder chamar de minha primeira incursão na literatura fantástica - uma quantidade maior do que imaginava de contos que podem ser assim classificados vai estar no meu livro de estréia, A sordidez das pequenas coisas, e, a bem da verdade, nunca escondendo minha predileção pelos autores latino-americanos (Onetti, Vargas Llosa, Bioy Casares e, mestre dos mestres, Cortázar), a influência desta farta dose de literatura na minha vida me tem feito descobrir temáticas que encontram resultados que muito me agradam quando passeiam pelo terreno do estranhamento, sempre buscando o insólito no cotidiano, no entanto, longe do que proporia um Borges, com certeza -, esta foi a tentativa mais clara de composição de um conto fantástico, com o emprego intencional de algumas estratégias narrativas que o classifiquem como tal.

No primeiro volume do Ficção de Polpa, eu já havia manifestado uma intenção neste sentido, com a composição de Vãos, querendo fugir desesperadamente do terror gótico, do monstruoso e, muito mais, do escatológico, tendando produzir camadas de sobrenatural não-dito, num clima que propõe este estranhamento que pode ser tão bem fruto de forças não conhecidas quanto de desvios mentais.

Tento seguir em um caminho semelhante com a criação deste conto, e de outros que sigo escrevendo, procurando uma voz narrativa que deixa espaço para brechas, muitas brechas, incluindo o leitor como elemento fundamental para compreender os textos da forma que suas nuances vão lhe permitindo.