22 agosto 2009

A fortaleza da solidão

1.


Como um fósforo riscado num quarto escuro:
Duas meninas brancas, de camisola de flanela e patins de vinil vermelho com cadarços brancos, traçando círculo hesitantes numa calçada de pedra azulada e cheia de rachaduras às setes horas de uma noite de julho.

As meninas murmuravam rimas infantis,
eram rimas infantis, com seus cabelos rosa-celeste, finos como névoa, fluindo torrencialmente como se nunca tivessem sido cortados. Os pais das meninas tinham deixado que elas voltassem para a rua depois do jantar, desde que antes vestissem a camisola e escovassem os dentes, para se banharem no entardecer rosa-alaranjado do verão, o ar e a luz que pairavam sobre a rua e sobre todo o bairro de Gowanus como a palma de uma mão ou a superfície interna de uma concha. Os homens porto-riquenhos sentados em engradados em frente à bodega da esquina grunhiram diante da aparição, sem saber ao certo o que estavam vendo. Arreganharam os lábios para mostrar os dentes uns aos outros, um gesto que era uma demonstração de paciência, de tolerância solienciosa. A rua estava repleta de chapinhas semi-enterradas no asfalto amolecido, Yoo-Hoo, Rheingold, Manhatan Special.

As meninas, Thea e Ana Solver, brilhavam como uma chama recém-acesa.

Antes dos Solver, uma velha senhora branca já havia se mudado para o quarteirão imbuída da missão de resgatar um dos sobrados violentados, um sobrado que antes era uma casa de cômodos, substituindo quinze homens apenas consigo mesma e seus pertences encaixotados. Ela foi a primeira, na verdade. Mas Isabel Vendle só se movia furtivamente, como um rumor, um apóstrofo dentro de sua
brownstone, onde nesse momento ela se arrastava de bengala entre o apartamento do subsolo e o seu quarto no térreo, na antiga sala de visitas, para o quarto onde ela lia e dormia sob o esfacelado teto de gesso não restaurado. Isabel Vendle era curta feito o nó de um dedo, seu corpo se dobrava ao redor da cartilagem de velhas feridas. Isasbel Vendle relembrava um passeio de carro no lago George num barco latado, escrevia cartas mergulhando a caneta num tinteiro, umedecia selos passando-os numa esponja sobre um pires. O tampo da mesa era de cortiça. Isabel Vendle tinha dinheiro, mas os cômodos do subsolo da casa fediam a casca de fruta e jornal molhado.

As meninas de patins eram a novidade, sob o foco dos holofotes para iniciar o show: os brancos estavam voltando para a Dean Street. Alguns.

.........

Eu ia começar este post falando da extrema semelhança na narrativa dos jovens escritores norte americanos. Os jovens. Não falo de Philip Roth, não falo de Thomas Pynchon nem Don DeLillo, estes bastiões da literatura estadunidense. Refiro-me aos Jonathans (Lethem, de quem retirei o trecho acima, de seu A fortaleza da solidão; Safran Foer, sem dúvida o mais hypado dos três; Franzen - autor do sensacional As correções). Refiro-me, também, a Michael Chabon e mais uns tantos que, no momento, não me vêem. No entanto, acho que isto é assunto para outro post. Fica a provocação. Segue, então, minhas opiniões sobre este calhamaço de Jonathan Lethem.

Repleto de referências pop, a começar pelo título, e quase todas elas do universo dos quadrinhos - ao estilo e trazendo à mente, instantaneamente, o escritor um pouco mais conhecido no Brasil, Michael Chabon - A fortaleza da solidão, de Jonathan Lethem conta a história de amizade de dois garotos que, em comum, só tem três coisas: os nomes de gênios da música, a paixão pela chamada banda desenhada e o fato de serem criados longe de suas mães, por pais fechados em seu próprio universo (e os dois universos repletos da amargura de serem artistas, cada um em seu campo, não-realizados em suas carreiras). De resto, Dylan Ebdus e Mingus Rude são, com o perdão da frase fácil, opostos que se atraem: Dylan, um dos poucos garotos brancos do Brooklin, importunado quase todos os dias pelos garotos negros do bairro: no começo do livro estamos nos anos 70, quando os ideais da integração racial ainda eram um rascunho em um bairro eminentemente negro e latino; Mingus, o negro bem nascido, filho de ex-cantor de soul, que ao invés de escolher ser mais um dos “agressores” de Dylan, prefere deixar sua marca de outra forma, tornando-se um dos mais ousados grafiteiros do Brooklin.

Os quadrinhos são o ponto de encontro de Dylan e Mingus - mesmo que a escola, os hábitos sociais e tudo o mais (afinal, era uma época em que qualquer atitude estava repleta de componentes raciais que poderiam se tornar faísca para maiores conflitos) compactuassem para o contrário. E são os quadrinhos de super-heróis, mas também o grafite, o soul, o funk e o hip-hop, que se tornam combustível para a amizade que se estabelece entre os dois.

Romance de formação com elementos autobiográficos, A fortaleza da solidão é leitura prazerosa não só pelo ritmo envolvente e extremamente seguro com que Lethem quase que documenta a ocupação do Brooklin por brancos de classe média e a tensão racial decorrente disto. O livro é também um registro do passado recente estadunidense, flagrando a difícil relação entre negros e brancos em meio a uma busca da prometida integração racial.