Quando eu saí da minha pequena bolha de abstração —
um não-espaço construído à custa da observação ininterrupta de uma nódoa
situada a cerca de três metros do chão (como é que aquela nódoa se depositou
ali?) — eu estava novamente mirando a
senhora da cadeira de rodas. Encarando ostensivamente. E encarando a menina com
pele oleosa e cabelos presos em um tic-tac de ursinho, que foi quem trouxe a
senhora da cadeira de rodas até aquele lugar que deveria ser de atendimento
especial.
A senhora da
cadeira de rodas deveria ser atendida prontamente. Mas, a despeito do fato de
ela ter sido posicionada à frente de todos na fila e ninguém ter manifestado
qualquer negativa quanto a isto, ela espera tanto quanto todos ali. E todos têm
em suas mãos uma ficha de papel com um número. A senhora da cadeira de rodas
não têm, eu vi, pois deveria ter sido atendida prontamente, mesmo sem ter uma.
Mas isto não acontece e ela também parece procurar a sua própria nódoa em algum
canto do posto de saúde para construir sua bolha particular.
O posto de
saúde oficialmente chama-se Posto de Saúde Modelo, embora ninguém ali pareça
minimamente interessado em zelar pela suposta qualidade que a nomenclatura
pressupõe. Tudo parece um convite ao desejo quase insuportável de transformar a
experiência em ficção. Não transformei. Cá estou eu transformando-a em relato e
nada além disso.
No guichê
onde se lê "Informações" está um sujeito com um uniforme onde se lê
"Porteiro". Quando solicito a primeira, ele me indica o rapaz no
guichê exatamente ao lado do dele, no qual não há nada escrito. Mas é ele quem há de
me providenciar A Informação, este produto tão raro a ponto de ser necessário
um ritual para obtê-lo.
O Posto de
Saúde Modelo é bege e as pessoas são apáticas. A burocracia e o serviço público
tem cor e tem sentimento.
Findados os
trâmites inevitáveis para se constatar que eu já sou portador do Cartão de
Registro que garante o merecimento dos benefícios ali disponíveis, me indicam,
com o queixo, o guichê para agendamento, onde não está escrito Guichê para
Agendamento. Ali não está escrito nada.
Retiro minha
ficha de papel e sento, aguardando. Quando sou atendido, descubro que não é o
Cartão de Registro que querem. É o Cartão de Agendamento.
O Posto de
Saúde Modelo é o lugar onde se pede artifícios em forma de papel para garantir
que eu mereço estar ali. Todos parecem interessados em evitar que eu me divirta
em uma festa não tão divertida assim.
No guichê
para agendamento, onde não está escrito Guichê para Agendamento, digo que não,
que não tenho o Cartão de Agendamento. O rapaz de cabelo espetado, do outro
lado do vidro embaçado por uma superposição de impressões digitais, me diz que
tudo bem. Ele puxa de uma grande pilha de Cartões de Agendamento um Cartão de
Agendamento em branco, pronto para fazer o meu. Quando nota meu endereço,
impresso no Comprovante de Residência que eu lhe alcanço, hesita um tanto,
caneta bic em suspenso sobre o papel, e consulta seu oráculo em forma de tela
bege. Pede para que eu faça meu Cartão de Agendamento em outro lugar, naquele
mesmo Posto de Saúde. É um lugar que tanto pode ser PSF quanto ESF quanto SF.
Sua dicção ruim não está interessada em me prestar bom serviço.
O Posto de
Saúde Modelo é feito de seres construídos à base de balbúcios e direções
apontadas com o queixo e leve menear de cabeça. Bem leve.
Penso que
seja lá que nome for, uma placa há de me apontar. Qualquer departamento
terminado em F, é tudo o que preciso. Percorrido o labirinto de corredores e
portas beges e nódoas a três metros do solo e pessoas por todos os cantos,
chego à sala onde se lê PSF - Programa de Saúde da Família. Esta identificação
vem logo acima da recomendação "Bata e aguarde". É isto o que faço,
sendo magicamente abordado não por quem abre a porta, mas por quem surge atrás
de mim. Ela tem jaleco branco. Ela me pergunta o que preciso. Eu respondo que
preciso fazer o Cartão de Agendamento no PSF. Ela me diz que devo me dirigir a
uma porta alguns metros adiante, é lá que devo ir. Eu aponto, perguntando
"Lá?", ela diz "Aham". É um outro PSF. Desisto de
entender, vou lá.
O Posto de
Saúde Modelo tem portas com as mesmas inscrições porque é sempre bom se perder
para se encontrar.
E lá, no outro
PSF, uma baixinha com cabelos da cor do feno parece muito interessada em
resolver meu problema. Solicita o meu Comprovante de Residência. E olha para
ele com interesse. Ela se concentra em sua numeração e se certifica, graças a
uma tabela que me convida a também contemplar, que não é ali que devo fazer meu
Cartão de Agendamento. Não é mesmo. Não é, e ela já falou "para as gurias
lá de baixo". Entendo que se refere às gurias do guichê de agendamento,
onde não está escrito Guichê de Agendamento. Embora eu não tenha sido atendido
por uma guria, sei que é lá o lugar ao qual ela se refere. E lá é o lugar ao
qual ela me pede que eu volte. Antes disto, põe um papelote em minha mão. Ali,
ela anotou a lista de números residenciais que são de atribuição das
"gurias" do guichê de agendamento, onde não está escrito Guichê de
Agendamento.
É a prova de
que devo (e, porque não, mereço?) ter meu Cartão de Agendamento feito no guichê
de agendamento, um lugar onde não se deram o trabalho de escrever Guichê de
Agendamento.
A planta baixa do prédio é em forma de O, com um grande pátio no meio onde
pessoas esperam. Fechando a letra O estou, novamente, onde tudo começou.
Retiro minha ficha de papel e sento, aguardando.
O Posto de Saúde Modelo é feito de cadeiras estofadas que o peso de quem exerce a arte da espera conseguiu afundar.
O Posto de Saúde Modelo é feito de cadeiras estofadas que o peso de quem exerce a arte da espera conseguiu afundar.
A três metros do chão, a nódoa me observa. Ininterruptamente.











