"Sobre o amplo balcão — que ainda estava sendo limpo para eliminar o doce aroma do violento sucesso de Carol — ela as dispôs em uma fileira ordenada: primeiro as Pilsners, Tcheca, Alemã, Austríaca e as várias de fabricação caseira; depois as esotéricas: Elephant, da Dinarmarca; Wildebeeste, da República da África do Sul; Simpático e Sol do México para baixo; algumas Gulder nigerianas; algumas latas prateadas de Sapporo japonês; Carol chegou a pegar também uma caixa inteira de uma obscura cerveja chamada Black Mambo, fabricada na Mauritânia, a qual ninguém, ao que soubesse Carol, jamais havia comprado antes."
Faça sua escolha: conhecer mais sobre a Elephant, a Wildebeeste, a Simpático, a Sol, a Gulder, a Sapporo ou a Black Mambo? Uma escolha tão complexa quanto decidir por onde começar a falar sobre o livro do qual saiu o trecho acima. Vamos começar esclarecendo que se trata do romance Cock & Bull (que, na edição de 1992, da Geração Editorial, à qual pertence esta tradução, ainda trazia o subtítulo de Histórias de Phadas e Phodas. Em 2002 o livro ganharia nova edição, pela mesma editora, com o subtítulo de Histórias para boi dormir). O livro foi apresentado da seguinte forma pelo Sunday Times, de Londres: "Imagine um filme baseado na Metamorfose, de Kafka, com roteiro de William Burroughs e direção de David Cronemberg e você terá Cock & Bull". Dividido em duas novelas, a primeira “Cock: Uma Noveleta”, apresenta o casal Carol e Dan e o desapreço cada vez maior do segundo pelo sexo em contrapartida ao apreço crescente pelo álcool, principalmente pelas cervejas. Tendo de recorrer à constantes experiências masturbatórias, Carol não tarda a descobrir que certo dia começa a lhe nascer um pênis. Já na segunda novela, “Bull: Uma Farsa”, o primeiro capítulo não por acaso chama-se A Metaformose: ali, é a vez de Bull, um garoto, descobrir que uma vagina surgiu atrás da dobra de um de seus joelhos.
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Will Self, um feroz satirista britânico, consegue, nos seus melhores momentos, misturar de forma brilhante grosseria, erudição e delírio de níveis quase inimagináveis em sua obra.
Tentar ir mais do que isto sobre este livro neste pouco espaço seria tempo perdido. Mais efetivo será traçar um pequeno perfil do seu autor: Will Self, um feroz satirista britânico, consegue, nos seus melhores momentos, misturar de forma brilhante grosseria, erudição e delírio de níveis quase inimagináveis em sua obra. A ver: em Como Vivem os Mortos uma mulher morre e é encaminhada a uma máquina burocrática e infernal, responsável pela adaptação dos antigos viventes ao plano invisível da eternidade. Em O Livro de Dave o diário de um taxista misógino e paranóico, dos nossos dias, vira a bíbilia de uma nova religião, cinco séculos mais tarde. Mais? Em Minha Ideia de Diversão, o autor, que desde os doze anos é viciado em drogas pesadas, consegue ir longe no seu objetivo declarado de escrever um livro que “chocasse as pessoas”: no mundo distorcido de Ian Wharton, executivo da área de marketing, as pessoas se divertem cortando cabeças de mendigos e praticando sexo com o buraco sanguinolento do pescoço da vítima. Ou assassinando a própria esposa e arrancando de seu útero a criança que ainda não nasceu. O personagem principal espera que o leitor reflita se deve seguir em frente ou não. Chocante, mas para a crítica norte-americana, Self tem um prosa que fica pouco devendo a Shakespere, e o autor é colocado no mesmo panteão de Nabokov, Pynchon e Martin Amis — embora seu estilo pouco palatável a qualquer um também possa associá-lo ao sempre chocante Chuck Palahniuk. Mas é fato que seu estilo está anos luz deste.
Se na primeira novela de Cock & Bull há este apreço de Dan pela diversidade de cervejas (especialmente por uma belga de 1922, chamada Lamot), eu não pude resistir a investir em uma japonesa, mais do que centenária. Com produção iniciada em 1876, na cidade de mesmo nome, a Sapporo é a mais antiga marca de cerveja do Japão. Obra de Seibei Nakagawa, primeiro japonês tornado mestre cervejeiro sob técnicas alemãs, seu objetivo era fazer uma cerveja lager com autênticas técnicas artesanais, repleta de ingredientes locais.
Atualmente, marca pertencente ao grupo canadense Sleeman Breweries, que a arrecadou em 2006 por US$400 milhões, seu carro-chefe é a Sapporo Premium: icônica em sua linda lata prateada adornada por uma grande estrela dourada, representando o pioneirismo da empreitada. Produzida agora no Canadá, a Sapporo Premium tem 5,0% de teor alcoólico e é reconhecida por seu aspecto leve, fresco e de textura granulada. Mas por usar arroz em sua composição, sua característica mais significativa é uma certa doçura. Um contraponto total ao amargor em que a obra do autor do livro onde a conheci costuma estar encharcado.
Publicado originalmente na HNB Mag.