31 dezembro 2013

A Zona da Invisibilidade (um trecho)


Sigo na escrita de A Zona da Invisibilidade, romance que devo concluir no primeiro semestre de 2014. Ainda é difuso estabelecer uma sinopse, mesmo que já o tenha feito, no processo de concorrência a algumas bolsas. Mas o que autor fala a respeito de seu livro serve para muito pouco — senão, não haveria o livro. Aqui, um trecho do primeiro capítulo, que estabelece o clima geral da coisa toda. Creio.


             


(A casa toda um reservatório de possibilidades.
Completamente indiferente à realidade de que um mundo daquele só lhe concederia passagem aos pequenos bocados — arrancados com sofreguidão e se rápido o bastante fosse —, Mariano se apoiará no fato de ser novo demais para compreender uma possível compaixão que faria com que só o suportassem por ali. Ou princípios teóricos, que naturalmente o manteriam longe, e então irá se estabelecer.
Talvez todos esperem que ele se manque.
Talvez a mãe de Peter ceda uma vez, vá lá, e permita que ele entre na casa com a boa vontade de quem faz um gesto altruísta, remoída de culpa burguesa. E que se esparrame pelo gramado como um lagarto aproveitando os últimos resquícios solares de cada fim de tarde. Que se debata como um gatinho jogado à morte na piscina de fibra azul, mal se sustentando mesmo com as bóias em forma de lingüiça flanando por todo lado, no seu arremedo de nadador, espalhando água até em cima das cadeiras brancas refulgentes à tinta marítima.
Ou talvez nada disto.
Será como uma retribuição.
Um provável agradecimento à sua natural hospitalidade das ruas. Um sistema de troca. Porque, sem que tenha qualquer intenção ou preparo formal, Mariano apresentará seu mundo a Peter. Seu reino descascado formado de paralelepípedos pintados à cal, existentes com a única fidelidade de serem depositórios das tampas de dedões ao fim de cada jogo de bola. Seu conjunto de fachadas tediosas de residências quase idênticas, pintadas com uma falta de criatividade — branco, marrom, ocre: paredes, esquadrias, telhados, nesta ordem — que aquela mansão certamente não terá.
A casa toda um bunker luxuoso à prova de joão-bolão.
Seu reino podia não ser objeto de disputa, como as partidas de sinuca na grande mesa verde da casa de Peter, mas era seu pedaço, território indissolúvel do próprio pequeno ser que era e perfeitamente adaptado aos seus passos, seus jogos, sua ideia de divertimento. Que tinha um tanto de rústica, mal ajambrada, urbana em demasia. Mas, neste reino, Mariano deverá permitir e ciceronear a passagem de Peter, como um Kwame em Capitão Planeta, impedindo pequenos terremotos, movendo rochas para escapar de fendas no chão, criando pequenas ilhas no oceano de pasmaceira que eram os dias no subúrbio. Deverá dar espaço a ele e o convocar para uma daquelas partidas de jogo de taco, e será aquele que repreenderá com a severidade que sua pouca idade permitirá os que tentarem esboçar uma zombaria, os que colocarem um pé naquela zona que rapidamente permite se achar mais engraçado que o outro, fazendo troça, dando-lhe um tapa na nuca, deixando o corpo como obstáculo numa disputa durante um jogo de taco. Mariano será aquele que não rirá da pouca maldade de Peter, de sua ingenuidade que terá uma porção quase lúdica, talvez potencializada pelo nome que muitos se esforçarão para transformar numa piada de funcionamento subseqüente  “Como é que fala o nome dele? Pí-ter? Ah, é Pé-ter? Peter Pan? Ha ha ha! Que merda! Ele tem o nome daquele moleque que usa collant verde!”).
Mais: não é de se duvidar que Mariano deva ser aquele que tentará proteger Peter.
Se for possível, dos olhares que o descascarão em pequenas camadas, desfolhando-o sem piedade e expondo um interior frágil demais, branco e rico como pouco se vê por ali.
Só que quanto a isto não haverá muito o que fazer. Porque os olhares, na maioria das vezes, são tudo o que aqueles moleques tem. Então, como impedí-los de demorar os olhos nos tênis que serão de modelos nunca vistos, escandalosamente reluzentes e incrustados de tecnologias sem serventia alguma para o jogo de taco?  Se não havia como evitar que seus olhares se estendessem por minutos eternos, desnudando as meninas que passavam com seus passos demoradamente elásticos ostentando peitinhos recém-brotados, quadris magicamente arredondados na noite anterior a sacudir seus cabelos repletos de creme rinse, como evitar que não coloquem um olhar pesado naquelas roupas que serão sempre chamativas demais, estampadas com expressões pouco compreensíveis, mas de sedutor apelo, com seus Sports Limited Editions, Bariloche Snowshoeing Tour, Original Skateboards, de um Peter que parecerá constantemente alheio a qualquer ameaça de perigo? A qualquer noção de perigo.
Afinal, o que eles irão querer ali?
Não haverá como evitar, só ser cicerone. Um condutor para que os dias de entrada de Peter naquele mundo não sejam impregnados do mesmo limo que cobre a calçada e torna impossível o desenho traçado a giz dos quadrados do jogo de amarelinha.
Por isso, então.
Por ser condutor e pelo que isto significará, será dado a Mariano a permissão de penetrar no outro mundo.
Será ao entrar — porque antes, claro, será só prenúncio, coletânea de suposições — que você descobrirá que melhor seria se não o tivesse feito.)