Sigo na escrita de A Zona da Invisibilidade, romance que devo concluir no primeiro semestre de 2014. Ainda é difuso estabelecer uma sinopse, mesmo que já o tenha feito, no processo de concorrência a algumas bolsas. Mas o que autor fala a respeito de seu livro serve para muito pouco — senão, não haveria o livro. Aqui, um trecho do primeiro capítulo, que estabelece o clima geral da coisa toda. Creio.
(A casa toda um reservatório de possibilidades.
Completamente indiferente à realidade de que um mundo daquele
só lhe concederia passagem aos pequenos bocados — arrancados com sofreguidão e
se rápido o bastante fosse —, Mariano se apoiará no fato de ser novo demais
para compreender uma possível compaixão que faria com que só o suportassem por
ali. Ou princípios teóricos, que naturalmente o manteriam longe, e então irá se
estabelecer.
Talvez todos esperem que ele se manque.
Talvez a mãe de Peter ceda uma vez, vá lá, e permita que ele
entre na casa com a boa vontade de quem faz um gesto altruísta, remoída de
culpa burguesa. E que se esparrame pelo gramado como um lagarto aproveitando os
últimos resquícios solares de cada fim de tarde. Que se debata como um gatinho
jogado à morte na piscina de fibra azul, mal se sustentando mesmo com as bóias
em forma de lingüiça flanando por todo lado, no seu arremedo de nadador,
espalhando água até em cima das cadeiras brancas refulgentes à tinta marítima.
Ou talvez nada disto.
Será como uma retribuição.
Um provável agradecimento à sua natural hospitalidade das
ruas. Um sistema de troca. Porque, sem que tenha qualquer intenção ou preparo
formal, Mariano apresentará seu mundo a Peter. Seu reino descascado formado de
paralelepípedos pintados à cal, existentes com a única fidelidade de serem
depositórios das tampas de dedões ao fim de cada jogo de bola. Seu conjunto de
fachadas tediosas de residências quase idênticas, pintadas com uma falta de
criatividade — branco, marrom, ocre: paredes, esquadrias, telhados, nesta ordem
— que aquela mansão certamente não terá.
A casa toda um bunker luxuoso à prova de joão-bolão.
Seu reino podia não ser objeto de disputa, como as partidas
de sinuca na grande mesa verde da casa de Peter, mas era seu pedaço, território indissolúvel do
próprio pequeno ser que era e perfeitamente adaptado aos seus passos, seus
jogos, sua ideia de divertimento. Que tinha um tanto de rústica, mal ajambrada,
urbana em demasia. Mas, neste reino, Mariano deverá permitir e ciceronear a
passagem de Peter, como um Kwame em Capitão
Planeta, impedindo pequenos
terremotos, movendo rochas para escapar de fendas no chão, criando pequenas
ilhas no oceano de pasmaceira que eram os dias no subúrbio. Deverá dar espaço a
ele e o convocar para uma daquelas partidas de jogo de taco, e será aquele que
repreenderá com a severidade que sua pouca idade permitirá os que tentarem
esboçar uma zombaria, os que colocarem um pé naquela zona que rapidamente
permite se achar mais engraçado que o outro, fazendo troça, dando-lhe um tapa
na nuca, deixando o corpo como obstáculo numa disputa durante um jogo de taco.
Mariano será aquele que não rirá da pouca maldade de Peter, de sua ingenuidade
que terá uma porção quase lúdica, talvez potencializada pelo nome que muitos se
esforçarão para transformar numa piada de funcionamento subseqüente — “Como
é que fala o nome dele? Pí-ter? Ah, é Pé-ter? Peter Pan? Ha ha ha! Que merda!
Ele tem o nome daquele moleque que usa collant verde!”).
Mais: não é de se duvidar que Mariano deva ser aquele que
tentará proteger Peter.
Se for possível, dos olhares que o descascarão em pequenas
camadas, desfolhando-o sem piedade e expondo um interior frágil demais, branco
e rico como pouco se vê por ali.
Só que quanto a isto não haverá muito o que fazer. Porque os
olhares, na maioria das vezes, são tudo o que aqueles moleques tem. Então, como
impedí-los de demorar os olhos nos tênis que serão de modelos nunca vistos,
escandalosamente reluzentes e incrustados de tecnologias sem serventia alguma
para o jogo de taco? Se não havia como
evitar que seus olhares se estendessem por minutos eternos, desnudando as meninas
que passavam com seus passos demoradamente elásticos ostentando peitinhos
recém-brotados, quadris magicamente arredondados na noite anterior a sacudir
seus cabelos repletos de creme rinse, como evitar que não coloquem um olhar
pesado naquelas roupas que serão sempre chamativas demais, estampadas com
expressões pouco compreensíveis, mas de sedutor apelo, com seus Sports Limited Editions, Bariloche
Snowshoeing Tour, Original Skateboards, de um Peter que parecerá
constantemente alheio a qualquer ameaça de perigo? A qualquer noção de perigo.
Afinal, o que eles irão querer ali?
Não haverá como evitar, só ser cicerone. Um condutor para que
os dias de entrada de Peter naquele mundo não sejam impregnados do mesmo limo
que cobre a calçada e torna impossível o desenho traçado a giz dos quadrados do
jogo de amarelinha.
Por isso, então.
Por ser condutor e pelo que isto significará, será dado a
Mariano a permissão de penetrar no outro mundo.
Será ao entrar — porque antes, claro, será só prenúncio,
coletânea de suposições — que você descobrirá que melhor seria se não o tivesse
feito.)