22 dezembro 2013

Jonatham Lethem: Brooklyn mergulhado em malt liquor


Sinapses #10: Literatura e levedura


“Barrett Rude Junior comprou seu ingresso e entrou, escolheu uma cadeira debaixo do balcão. Bingo Long já tinha começado, talvez já estivesse até no meio. O ar lá dentro era frio e rançoso. Uns dois terços dos lugares estavam ocupados, grupinhos de cabeças se espalhavam até pelos cantos mais remotos do gigantesco salão, todo mundo fumando, rindo e falando com os personagens do filme. Gritinhos e gemidos ecoavam dos cantos mais escuros. Uma mulher podia estar parindo gêmeos no balcão que ninguém saberia. Barrett Rude se recostou, testou as molas da sua cadeira, acomodou-se. Tivera a ideia providencial de trazer uma garrafa de Colt dentro de um saco de papel marrom, não tendo se dado ao trabalho de esconder o embrulho do indiferente rasgador de bilhetes. Agora abria a tampa com tranquilidade, fazendo sair da garrafa um rápido chuffff de gases libertos, respondido por um murmúrio invejoso dos que estavam perto o bastante para terem ouvido: Putz, por quê eu não pensei nisso…”


Suor. Ventiladores que não dão conta. Hidrantes jorrando água para a alegria das crianças. Velhotes empinando garrafas repletas de líquido amarelo, cravejadas de gotículas, na frente de bodegas escuras cheirando a queijo rançoso. Este é o Brooklyn dos anos 70, bairro onde Barrett Rude Junior, o previdente espertalhão do trecho acima aportou, refugiando-se em seu sobrado sob uma nuvem de pó branco e discos de ouro — herança da época áurea dos Subtle Distinctons, grupo de funk do qual foi o vocalista principal. Outros tempos aqueles. No momento, ele é só mais um suarento morador de uma zona de tensão racial buscando no velho Duffield (uma grandiosa ruína de um palácio art decó transformado em cinema), o ar condicionado bombando para aplacar o calor. E ele nem é o protagonista de A fortaleza da solidão (Companhia das Letras, 2007, 607 páginas), esta preciosidade literária de autoria de Jonathan Lethem.

Barrett é pai de Mingus Rude, garoto negro que se torna o melhor amigo de Dylan Ebdus, este sim o protagonista. E nas mais de seiscentas páginas do romance, é ele — dos seis anos à vida adulta — que destila sua obsessão por tudo o que o rodeou desde quando era só um menino sendo importunado e roubado quase todos os dias de sua infância: o preço de ser um garoto branco em um bairro no qual as ideias de integração racial ainda eram somente um rascunho e o que havia, de fato, era um caldeirão fervilhante de hispânicos, negros e brancos tolerando-se, quando muito. É neste cenário que o hip-hop, as HQs e o grafite constroem a personalidade do protagonista deste livro que é uma espécie de romance de formação autobiográfico. Um calhamaço repleto de momentos lindos e amargos. Amargor, que, aliás, é o contrário do sabor adocicado normalmente relacionado por especialistas à esta popularíssima cerveja Colt, a americaníssima Colt 45 que Barret bebe como suco naquela sessão de cinema.

Lançada na primavera de 1963 pela National Brewing Company, a Colt 45 é um ícone americano tão autêntico quanto John Wayne — não à toa o seu nome faz referência àquela que é considerada a mais precisa das armas americanas de fogo. A garrafa transparente é marca desta Pale Lager conhecida por seu sabor que traz referências à maçã, caramelo e cereais. O licor de malte, ingrediente mais barato com o qual é fabricada, é considerado uma forma rápida e acessível de embriagar. Fato que durante anos foi insinuado em seu slogan It works every time! Ainda que seu teor seja de 6.1%, o licor de malte é o responsável por sua potência, junto com a redução do teor de água durante a fermentação — uma bebida tão forte que alguns nem a classificam nominalmente como cerveja, preferindo tratá-la somente como malt liquor. Inicialmente, um produto focado no branco de classe média, os anos 70 e 80 a tornaram notória por sua associação à comunidade negra. Uma estratégia que se fortaleceu com a presença do ator Billy Dee Williams, expoente do Blaxploitation, em seus comerciais, anúncios e outdoors e que, nos dias de hoje tem como porta voz o rapper, ator e falastrão Snoop Dogg. Uma cerveja que divide opiniões, do tipo ame ou odeie: não podia haver melhor dupla para um sujeito como Barret Rude Junior.