18 março 2014

Michael Chabon: Pittsburgh de wonder boys e da Iron City


Um estudante que sabe a lista de todos os astros de Hollywood que se suicidaram. Um cachorro baleado com uma arma que deveria ser de espoleta. Um casaco curto de cetim preto, com gola de arminho, que pertencera a Marilyn Monroe (e que é roubado de uma festa na casa do chefe de departamento de uma universidade). Um escritor com excesso de criatividade que tem um caso com a esposa do chefe de departamento da universidade. Um livro de um escritor com excesso de criatividade, que já alcança as duas mil, seiscentas e onze páginas datilografadas, e ainda sem previsão de chegar ao final.

Isto está muito longe de ser o resumo de Garotos Incríveis (Record, 2000, 333 páginas). Mas perder algumas horas mesmo somente folheando este, que é o segundo romance na carreira do norte-americano Michael Chabon (que ganharia o Pulitzer pelo seu romance seguinte, As Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay), garante exatamente isto: que se ache trechos ao acaso tão completamente inacreditáveis e deliciosamente engraçados, capazes de obliterar mesmo a sinopse oficial. E ela — a sinopse oficial — nos dirá que Gady Tripp, o escritor de meia-idade protagonista deste romance, vive da fama conquistada na juventude, quando seus primeiros livros o consagraram. No período do romance, ele está há mais de sete anos preso no emaranhado de prédios belos e miseráveis para construir, crianças inocentes para matar com febre reunática, ruas às quais dar nome e tantos outros detalhes que fazem de Wonder Boys (o seu romance) aquele mamute inacabável. E é este livro que Tripp tenta esconder de Terry Crabtree, seu editor em visita à cidade, ansioso por colocar as mãos no próximo e esperado novo origial de seu autor prodígio. Não tardará, porém, para Crabtree preferir colocar as mãos no jovem James Leer — aquele estudante fascinado com os suicídios de Hollywood. Junte estes três aos personagens apontados lá em cima, mais Hannah, a estudante apaixonada por Tripp, um travesti pouco convincente e um fim de semana repleto de maconha e você terá uma noção bastante aproximada do que é este romance.

Com uma saga destas, não espanta que já conte com sua adaptação cinematográfica, dirigido por Curtis Hanson e estrelado por Michael Douglas, Tobey Maguire e Robert Downey Jr. Com trilha sonora de Bob Dylan, o filme é tão imperdível quanto o livro, nesta odisséia por ruas, bares e casas de Pittsburgh. E é uma nativa de Pittsburgh, a Iron City Beer, que dá as caras neste exato momento:

“Acenei para Hannah, que sorriu para mim, e quando olhei em volta e dei de ombros exageradamente, ela apontou para uma mesa no canto mais distante, longe dos dançarinos, do palco e de todos os outros clientes. Na mesa estavam sentados Crabtree e James Leer, atrás de um horizonte louco e comprido de garrafas de Iron City. James estava caído na cadeira, a cabeça inclinada contra a parede, olhos fechados. Parecia quase como se estivesse dormindo. Já Crabtree olhava para as pessoas que dançavam, ou para além delas, com uma expressão de concentração feliz. Seu braço estava estendido para baixo e para longe do corpo, num ângulo delicado, como se estivesse para escolher um bombom numa bandeja. Mas a mão estava em evidência, desaparecera sob a mesa, nas vizinhanças do colo de James Leer.”

Nascida em 1861, a Iron City foi a primeira cerveja da Pittsburgh Brewing Company (ou Iron City Brewing Company). Obra de um alemão imigrante chamado Edward Frauenheim, que fez a cerveja tornar-se reconhecida logo nos seus primeiros cinco anos. Mesmo a proibição, em 1920, que fechou muitas destilarias e cervejarias, não foi suficiente para por fim ao sucesso da Iron City. Sua produção foi retomada — ainda que tenha sido fundida à outra cervejaria, a Bond Brewing Holdings Ltda., e também passado por um processo de falência —  e o nome original da fábrica, Iron City Brewing Company, restaurado, produzindo uma série de outros rótulos. Sua maior marca é a garrafa de alumínio, com três vezes mais material que as latas comuns, garantindo uma cerveja gelada por mais tempo, além de ser mais leve que o vidro.

Tão lendária quanto a cidade onde tem origem, a Iron City é reconhecida como uma das melhores cervejas lager fabricadas nos Estados Unidos. É difícil imaginar um jogo de futebol, baseball ou hóquei onde ela não esteja presente. E como boa nativa, é claro que ela também habita o bar jazz Hi-Hat, que com seu Steinway de cauda, bar luminoso com refletores cor-de-rosa — pronta para tornar o fim de semana de Grady Tripp e sua trupe ainda ébrio e caótico.


Publicado originalmente na HNB Mag.