05 julho 2005

Para rir ou pra chorar

Você sabe, um filme do Woody Allen. Todas as características (ou serão clichês?) estão lá, para o bem ou para o mal. E isto não deve ser encarado como crítica, ou também pode, a escolha é do espectador: existem os que amam o eterno climão Manhattan os que se enfadam com tanto intelectualismo pedante. Não importa, por que em “Melinda e Melinda” tudo foi reunido: os artistas blasés, os intelectuais sempre prontos a definirem a engenhosidade da vida, os espaçosos apartamentos, as festas embaladas ao som de piano onde se desfiam filosofices e tudo o mais. E mais, – provando que está tudo lá – estão os “dois” Woody Allen, também. Aquele com gosto pela comédia e o que acha que o drama possui a forma mais profunda de investigação humana. Porque em “Melinda e Melinda”, temos dois enfoques de uma mesma situação.

"A vida pode ser uma tragédia ou uma comédia, depende de como se olha para ela". Clichê, ok. Mas é o mote principal do filme, que olha com a mesma curiosidade (ainda que de maneira mais tranqüila do que as vezes em que costumeiramente o diretor desempenha algum papel, também) para os temas prediletos do autor/diretor: amor, fidelidade, amizade, contentamento, comunicação. Todos os sentimentos passeando de guarda-chuva pela metrópole amada de Allen.

Ao discorrer sobre a essência da natureza humana, surge um desafio entre dois autores em uma mesa de bar. Cada um representa uma ótica e um estilo de escrita: há aquele que acha que a representação dos fatos de maneira mais leve, romântica, possibilita um olhar mais agudo sobre a humanidade. Que acha que rir de si próprio ainda é a melhor solução para toda a ignomínia do homem. Já o outro, considera o drama a grande virtude da criação. A análise densa, triste e pesada sobre os descaminhos e os desamores. Que não há nada – e nem motivo – para se achar engraçado. Que é a vida, então? Seria ela essencialmente trágica ou cômica? Pois a partir de uma situação-chave, proposta por um outro presente à mesa, começam a se delinear as situações que cada um encontra para definir a trama: uma garota surge desavisadamente durante um jantar na casa de amigos que não via há dois anos, causando constrangimento.

Então a história de Melinda (Radha Mitchell, sensacional nas duas interpretações: a Melinda “cômica” e a Melinda “trágica”) desenvolve-se à nossa frente, com intervenções dos dois amigos autores – lembrando, por vezes, algum tipo de coro grego, definindo os rumos da história.

É o olhar sobre o fato – cômico ou trágico – e não o fato em si o que acaba, portanto, condicionando o caminho que Melinda percorre. O que é mais interessante é que não há uma unilateralidade sobre nenhuma das versões de Melinda, ainda que cada trama se desenvolva independentemente. A Melinda trágica não é uma caricatura de alguém derrotado, de um ser frágil. Os motivos para seu sofrimento são latentes. No entanto, é a própria forma como a personagem encara os fatos em sua vida que condiciona o seu destino e o seu desfecho.

A Melinda cômica não é uma palhaça que ri de tudo. Poderia ser a mesma Melinda da outra versão, olhando de um viés alternativo em que ponto sua vida se encontra. E, paradoxalmente, esta Melinda cômica traz uma suavidade que a torna mais forte que a primeira. E elas chegam, nas duas versões, com a vida da mesma forma: trazem a dor de ter perdido a guarda do seu filho ao trair o marido (rico e bem relacionado) com um fotógrafo italiano. E Melinda quer apaixonar-se outra vez.

O que há aqui, portanto, é o arbítrio do homem frente ao seu destino. Não somente as escolhas o condicionam, mas o sentimento sobre elas e a maneira como lidam com eles. São risíveis os fracassos inevitáveis? São desabonadoras e melancólicas as desilusões amorosas? E amanhã, se vai rir ou chorar das perdas e das vitórias?

Como as tragédias podem ser revertidas em sorriso e vice-versa, àquele que acredita na dramaticidade cabe desenvolver a história de Melinda irrompendo cheia de malas inconvenientemente no jantar que o ator Lee (Jonny Lee Miller) organiza para um diretor de teatro, bajulando-o a fim de conseguir o papel principal em sua peça. Lógico que ele fica possesso com a chegada de Melinda, uma amiga de adolescência de sua esposa, Laurel (Chlöe Sevigny), que não poderia escolher aparecer em pior momento. Sobre Melinda, aquela mesma ladainha: largou o marido, está longe do filho, blá, blá, blá. São as lamúrias de Melinda, a nervosa e fumante Melinda, que bebe vinho com desespero e respira com sofreguidão.

O dramaturgo que acredita na comédia faz de Melinda uma atrapalhada e encantadora vizinha que acaba de se mudar para o andar de baixo e que (também) surge durante um jantar. Desta vez, é à porta do ator fracassado Hobie (Will Ferrell) que ela bate, justamente quando a mulher deste, a cineasta Susan (Amanda Peet), tenta convencer um possível investidor a patrocinar seu futuro filme. No entanto, depois que Melinda conta que engoliu dezenas de comprimidos, são só para si as atenções que atrai ao estragar (mais um) jantar para o qual não foi convidada.

Woddy Allen embaralha as duas narrativas, afinal, pitadas de adultério, de desilusões e descobertas amorosas são detalhes presentes nas duas, bem como situações específicas, que se repetem com diferenças sutis. Certo é que a sutileza chega a tal ponto que a separação entre o trágico e o cômico se estreitam. Como é fácil rir de quem chora e chorar quando alguém ri, Allen mostra que viés pode esconder cada sentimento.

Ainda que Allen não esteja presente com seu neurótico e hipocondríaco alter-ego, certo é que ele delega tal função ao ótimo Will Ferrel. No começo, é de estranhar um tanto aquele tipo – tão tipicamente ‘alleniano’, assim como se estranhou Kenneth Branagh na mesma posição, em um primeiro momento – no entanto, Ferrel conquista com seu talento mais do que comprovado pelo ótimo “Saturday Night Live”. Os tiques e manias estão todos presentes, assim como a crítica aos mais bem sucedidos em beleza ou em atividades físicas, como os personagem que Allen representa sempre se empenham tanto em criticar.

A meu ver, no entanto, a versão trágica da história se desenvolve de melhor maneira, com uma variedade de nuances mais imprevisíveis. As reviravoltas se revelam mais densas, ao contrário da comédia, um tanto rasgada demais. Fora o fato da versão cômica se mostrar apressada no seu encerramento, meio “conto de fadas”.

Enfim, ainda que muitas vezes previsível e com uma meticulosidade da qual seria impossível fugir, uma vez que cada história é contada sob um viés, é um trabalho inteligente, mas definitivamente não genial. Embora Woody Allen mostre a destreza com que passeia pelos gêneros fílmicos, o resultado acaba sendo comum. Mas nitidamente superior às suas incursões anteriores como “Dirigindo no Escuro” e “Igual à tudo na Vida”.

"Melinda e Melinda" ("Melinda and Melinda", EUA, 2004). Direção e roteiro de Woody Allen. Com Radha Mitchell, Will Ferrekl, Chloë Sevigny, Chiwetel Ejiofor, Amanda Peet, Brooke Smith, Neil Pepe e Johnny Lee Miller. Duração aproximada de 110 minutos. Site oficial: www.melindaymelinda.fox.es.

Publicado originalmente no Simplicíssimo.