06 abril 2006


O voice off , recurso utilizado no cinema para revelar ao espectador os pensamentos do narrador, na maioria das vezes representa uma atitude extrema, a forma de solução mais fácil e direta de tornar claro aquilo o que narrativa visual, os diálogos com outros personagens não foram suficientes para nos alertar. Poucas vezes o vi bem empregado, sempre pareceu uma estratégia parca e sem criatividade: o tom completamente confessional, a narrativa em primeira pessoa "narrada" sempre arrastou e conduziu em excesso as tramas, como um cão-guia a nos levar constantemente, sem meias-palavras, sem que tivéssemos capacidade de descobrir por nós mesmos: "eu sou assim, eu gosto disso, eu faço isso, eu sofro com isso, o que eu penso sobre isto é". Enfim. Descobrir todos estes gostos, sentimentos, inseguranças dos personagens sempre me pareceu mais interessantes através de sua interação ou até a falta de interação com outros personagens, sua relação com o mundo à sua volta. Jorge Furtado, para ficar só em um exemplo nacional, é um diretor que sempre abusou do voice off empobrecendo seus filmes com a clareza das intenções dos seus personagens sendo reveladas tão explícita e didaticamente ao espectador.



No entanto, me vi obrigado a rever meus conceitos sobre tal recurso assistindo "O Sol de Cada Manhã" (The Weather Man, EUA, 2005), de Gore Verbinski. No filme, em que Nicolas Cage interpreta David Spritz, o "homem do tempo" de um canal de televisão em Chicago este recurso é empregado de uma maneira que não difere da convencional (e existiria outra forma?), mas no contexto em que está inserida funciona com perfeição. Na realidade, o voice off neste filme é mais um elemento que contribui com toda a introspecção, o tom extremamente intimista e discreto em que esta película funciona. Exerce sua função mais evidente, é claro, é feita para nos dizer quão completamente insatisfeito com sua vida se encontra David, mas não rouba lugar de nenhuma outra forma de comprovarmos isto ainda que este recurso fosse abandonado. Funciona como uma assinatura, somente um auxiliar do que David sente em relação com aquilo o que está vivendo e nós estamos vendo. Na maioria das vezes compactuamos com sua apreensão dos fatos, não somos somente conduzidos a ele por que sua narração nos convenceu disso.



Não fosse o voice off, certamente da mesma maneira ficaria clara a inadequação de David em relação à sua família, ao seu emprego e, principalmente, em relação ao seu pai. David falhou como marido (se divorciou recentemente de sua esposa – vivida por Hope Davis – que agora está às voltas com um gordinho almofadinha), como pai (seu filho, o ator Nicholas Hout, de "Um Grande Garoto" se envolveu com drogas e agora passa o seu tempo livre em um programa de reabilitação e sua filha, interpretada por Gemmenne de la Peña, de "Erin Brockovich" é uma menina acima do peso, profunda e constantemente deprimida). Não bastasse isso, David questiona cada vez mais a importância de sua função profissional – ele não é meteorologista, não faz qualquer tipo de análise técnica para exercer sua função, tudo o que faz é se movimentar com bastante habilidade e desenvoltura na frente de uma tela verde, ler o tele-prompter da maneira certa e esgaçar um sorriso quilométrico que conquista alguns telespectadores e irrita outros (uma de suas últimas preocupações é entender por que tantas pessoas e tão constamente, lhe atiram coisas na rua: copos de milk shake e refrigerante, fallafels, tortinhas do Mac Donald’s e toda sorte de fast-foods). Não importa que ganhe um salário invejável para fazer isso e, por isso, seja considerado um cara "bem sucedido". Tem certeza de não despertar orgulho no seu pai, Robert, um famoso escritor ganhador do Pullitzer (interpretado magistralmente, como é de hábito, por Michael Caine, que sempre pareceu conjugar com tanto sucesso a administração de uma família feliz e funcional e de uma brilhante carreira literária. E que, ainda que não grosseiramente – pois mantém o tom baixo e cerimonial quase o tempo inteiro, aumentando ainda mais o distanciamento entre ele e seu filho, já brilhantemente demarcado pela distância física com que Gore Verbinski sempre posiciona os dois atores em cena – parece sempre deixar claro para seu filho a incompetência em administrar os problemas de sua família. O fato de David Spritz ser uma espécie de celebridade na cidade também não parece impressioná-lo muito. A tentativa mais recente de fazer com isto aconteça, no entanto, é David lhe falar sobre a possibilidade de ser o homem do tempo de um importante programa em rede nacional, ganhado praticamente cinco vezes mais do que seu salário atual.



Por essa preocupação constante em despertar orgulho no seu pai, de fazer com que seus filhos possam ser crianças felizes, e de tentar recuperar o seu casamento de volta, David está sempre em constante tensão, cometendo erros e com hesitações que trazem identificação imediata, indo da serenidade ao nervosismo descontrolado em poucos instantes. O que David parece não se dar conta é de não ser um absoluto fracasso como tem quase certeza. A ascenção profissional é um exemplo disso e os esforços contínuos para dar algum significado à infância triste de sua filha é outro. Bem como as medidas extremas para que seu filho não se torne um adolescente problemático. Certo é que as tentativas de recuperar sua mulher tropeçam em uma certa infantilidade e egoísmo, mas David não se diferencia de um adulto normal com problemas normais tentando honestamente lidar com eles.



São problemas comuns de pessoas comuns o que vemos neste filme. E exatamente isto é a fórmula de sua empatia. O que acontece, no entanto – e esta verossimilhança é mais impactante – é que o filme não se propõe a dar nenhuma fórmula mágica de felicidade, nem de apontar caminhos para mostrar a facilidade de reconstrução de uma "família feliz". Pelo contrário, é um filme tão maduro emocionalmente que foge dos clichês, demandando uma profunda reflexão. O que nem sempre é interessante para quem anseia pela fuga através do mundo ficcional. Para quem espera um mundo de perfeição que se diferencie de sua vida comezinha, "O Sol de Cada Manhã" não é, portanto, o filme mais indicado.