06 abril 2006

Crash e as armadilhas dos clichês sentimentais




Dizer que a cultura americana sofre de problemas sérios é chover no molhado. No entanto, quando um filme como "Crash" é considerado uma obra sensível, um "retrato bem acabado" sobre a cultura racista norte-americana, sobre as intolerâncias étnicas e, por fim, é ganhador do Oscar de melhor filme – bem, aí se vê com clareza o quanto o american way of life é doente, além de chato e extremamente superficial.


"Crash", a que me obriguei a ver pela curiosidade que o fato de ter ganhado o prêmio da Academia me impôs como agenda midiática, é um dos filmes mais tendenciosamente orquestrados para causar sentimentos pré-determinados no espectador que já vi na minha vida. É um dos filmes mais claramente feitos sob a égide da tentativa de sensibilização, sob a construção traiçoeira e farsesca de uma emoção que para os produtores do mesmo seria passível de ser implantada. Mas é óbvio que em muitos incautos isto se deu de maneira magistral. Por que é preciso uma mentalidade muito, mas muito mediana para encontrar qualquer coisa de palátavel nesta obra que só consigo enquadrar sob a definição de medíocre. Extremamente medíocre. Não consegue nem defender nem polemizar, se situa em cima do muro durante todo momento, em um fio-de-navalha pré-concebido e desonesto, pregando pecinhas a todo tempo, querendo criar armadilhas surpreendente, mas enumerando uma tal sucessão de clichês que por vezes a película parece paródia de tudo o que já foi feito de filmes desta espécie.


Antes de tudo "Crash" é um filme chato. Todas as suas cenas e desfechos são previsíveis e os personagens têm a profundidade de um pires. As cenas são forçadas ao extremo e as coincidências recorrentes (que, cuidado!, por se tratar de uma "trama que entrelaça destinos e personagens em Los Angeles", não podem ser acusadas de "absurdas") são tão superficiais… É possível adivinhar sem margem de erro quais os personagens se encontrarão novamente no "futuro" do filme para um "acerto de contas" redencionista. "Crah" na realidade é um insulto à inteligência do espectador.


Número 1: não há nada de novo neste entrelaçamento de destinos, personagens com realidades tão díspares que têm seus destinos cruzados. Não cometerei eu o mesmo mal de Paul Haggis subestimando tua inteligência: aposto que tens absoluta consciência a quais filmes me refiro. Ademais, a quantidade de resenhas espalhadas por aí todas clamam pela mesma falta de originalidade. (Isto quando não são aqueles que enxergaram um filme sensível, um retrato perfeito das intolerâncias raciais norteamericanas e blá, blá, blá).


O que é "Crash", então? Um filme pretensioso que joga com os personagens de maneira idiota, pretendendo aprisionar o espectador nestes entrecruzamentos de destinos – uma das principais dificuldades de se conseguir tal feito, no entanto, é a absoluta falta de empatia que se dá entre personagem-espectador. Como cada um dos personagens não deve passar dez minutos em cena, é impossível de se criar algum vínculo emocional com os mesmos. Não adianta vir um latino contando para sua filhinha a historinha de que tem uma "capa mágica" capaz de protegê-lo de tiros e balas e que naquele momento a passaria para ela. É preciso retirar as amarras da insensibilidade do coração para se descobrir que a menininha iria "utilizar" a capa para salvar seu pai? Oh, contei alguma coisa que não devia? E quem não sabia disto? Um imbecil que ainda não foi intoxicado pela profusão de clichês em filmes hollywoodianos, por certo.


Que mais? Hmmm, vamos lá. Desde o começo, então. Que tal a personagem de Sandra Bullock, uma mimada e insuportável esposa de um rico promotor (hei, não perca nada: uma branca insuportável e desprezível que terá medo de quem…?) , Brendan Fraser, que tem sua rotina alterada quando seu carro de luxo é roubado por… dois assaltantes negros! Isso! Agora, o "tchan", a "malandragem" é que um pouco antes de assaltar, os dois negros fazem um discurso sobre o temor que eles sentem de serem os poucos negros em meio a uma multidão de brancos, que eles deveriam os temer. Haggis traz a "surpresinha" colocando os dois negros indignados por que a branca rica apressou o passo quando os viu, abraçou o marido e caminharam rápido para sua enorme caminhonete. Coitado dos negros, não? Incompreendidos, vítimas de pré-conceito… Hmmm, mas não se deixe enganar. Eles são do mal, mesmo. Era um discurso pra pregar uma pecinha, por que rápidos estes negros sacam de suas armas, apontam para a cabeça da branca e de seu marido promotor branco e levam sua caminhonete dali. Ué, mas não era "pobres" negros sendo discriminados? Mas que virada sensacional que este diretor armou pra mim! Na verdade, eles são aquilo o que a branca temia que fossem – dois desprezíveis marginais – e aquilo o que os próprios fizeram questão, através de seu discurso, de nos enganar, parecendo não ser. Brilhante, brilhante! Um Oscar para Paul Haggis!


É só o começo deste bastião da sensibilidade, da "verdade que não é tão simples quanto você imagina". Afinal, "vivemos tão isolados e sem perceber o que se passa à nossa volta que às vezes é preciso um bom ‘encontrão’ para lembrarmos que estamos vivos", não é? E que melhor maneira de fazer isto do que desenvolver estereótipos raciais extremados, acenar com a destruição destes estereótipos e reapresentá-los exatamente como se pressupõs que eram? Hmmm… Dois negros vestidos como rappers marginais na noites, são só dois negros marginais na noite. Com uma viradinha no meio para você achar que não. É a técnica diretor-espertinho aplicada com maestria.


Outra prova disso. Um policial branco racista (Matt Dillon), que já manifestara sua aversão à raça negra em um desrespeitoso telefonema a uma responsável pelo atendimento médico sobre a qual inquirira a respeito de tratamento para seu pai, e a insultara após descobrir seu nome (Shaniqua Johnson – nome muuuito típico de negras norteamericanas), pára uma gigante Navigator ao ver que é dirigida por um negro e tem uma negra na carona (que visivelmente aplicava um boquete no motorista um pouco antes de serem parados). Bom, a "batida" acaba sendo só um pretexto para o policial branco racista apalpar a mulher de maneira insidiosa – e esta, óbvio, se sentir humilhada e ainda mais por que seu marido, um diretor de televisão (negro? mas bem sucedido? que surpresa!) manter total impassividade ante o fato, se humilhando e pedindo desculpa por seu comportamento ao policial branco racista. Pois então (e parem aqui os que não assistiram ao filme e não querem ter sua "experiência cinematográfica frustrada), a mulher, no "futuro" do filme sofrerá um acidente automobilístico e adivinhem quem será o seu salvador? Há! Malandrinho você, hein? E isto só para demonstrar o quanto os seres humanos são seres cheios de complexidades. Afinal, como é possível que um policial racista asqueroso nojento pervertido salve de maneira tão heróica a moça que lhe serviu de descarga de suas depravações imorais? Ora, com muito clichê, é claro. Afinal, Los Angeles é só uma pequna cidadezinha – as chances de o policial que lhe salva amanhã ser o mesmo que lhe bolina hoje são, portanto, enormes.


Cara, isto está ficando divertido demais. Tal qual minhas risadas em frente à tela (consternando, ao certo, as "pessoas de bem", emocionadas com esta trama corajosa). Que mais? Bem, na cena supracitada, quando o policial branco racista nojento depravado salva a negra humilhada frustrada decepcionada com o marido negro com tendências brancas covarde humilhado do meio das ferragens de um automóvel prestes a explodir, Haggis capricha! Há, ele capricha, sim! Edita a cena em câmera lenta, com a trilha sonora aumentada e Matt Dillon fazendo caras e bocas. Cara, é emocionante! Uma reviravolta… Então o o policial mau na realidade era bom e ele escondia isso… por que… por que… hmmm, estava frustrado com o seu cotidiano violento naquela cidade violenta? É por isso, hein?


Bom, isto parece que não tem fim. Este filme tem que ser o exemplo principal em uma aula de "como escrever um filme cheio de reviravoltas espertinhas para parecer corajoso e inovador e contestador contra o racismo e intolerância que destrói nossas vidas". Tinha até o exemplo do persa vs. o latino para tirar mais uma onda, mas sei lá…


Ok, vamos lá! No filme tem um personagem que é um persa imbecil e ignorante que o diretor quer que tenhamos pena só por que ele é um persa discriminado constantemente ao ser confundido com muçulmano (sacadinha número 1). O único problema é que o persa realmente é um imbecil e ignorante (e isto depende de sua etnia), que não se deu ao trabalho de aprender a língua do país para onde migrou e por esta imbecilidade constantemente comete grosserias contra todos a sua volta. Inclusive contra o chaveiro latino que instala uma fechadura nova na sua loja, conforme o persa solicita, mas lhe diz que o problema não é a fechadura, mas sim a porta, destruída, que deve ser trocada. O persa não entende o que o latino fala, ainda que o repita em inglês de maneira pausada e o repita. O persa grita com o latino, diz que ele quer aplicar um golpe nele e por fim o latino desiste a vai embora – sem nem cobrar pela fechadura nova. Bom, o que acontece, e todos prevêem é que a loja do persa é arrombada e ele quer culpar o latino. Descobre o endereço do mesmo e parte em busca de vingança contra uma idiotica sua. Aí se descobre o porquê da tal capa protetora invisível já citada anteriormente. E se encerra com chave de ouro a sucessão de clichês dispostos como armadilhas para tentar conquistar os espectadores. Claro que não sem as lições finais de felicidade e de redencão que não podiam faltar.