11 outubro 2013

Uma Guinness na Dublin assombrada de Daniel Pellizzari

Sinapses #09: Literatura e levedura

     Imagem: Ivson Miranda

“Hairy Lemon lotado. Encaro meio lerdo as bicicletas dependuradas numa das paredes que consigo enxergar. Cacarejos femininos, rosnados masculinos, rúgbi na televisão. Na minha frente, um prato de linguiça com fritas pela metade e um pint de Guinness, ainta intocado. Quinta rodada. Três pints é a medida aproximada da quantidade de álcool necessária para invocar o gênio da autopiedade. Tento distrair sua presença passando por cima do ruído ambiente para prestar atenção nas palavras dos meus companheiros de mesa.”




Há que se elencar uma porção de fatos sobre o livro do qual foi retirado o excerto acima: 1) Magnus Factor, o narrador do trecho em questão é um dos seis narradores, que alternam-se ao longo do romance; 2) Magnus é um dos sócios de uma agência de passeios por locais mal-assombrados de Dublin, todos inventados por ele; 3) Os outros narradores são seus parceiros na trambicagem, Zbigniew e Barry, além de Laura, com quem Magnus se envolve. Também há Patrícia, Demetrius Vindaloo e Siobhan, membros de um culto que pretende trazer à Terra um antigo deus-serpente; 4) O romance faz parte da Coleção Amores Expressos, que mandou uma porção de escritores para diversos países, com a missão de trazer uma história de amor ambientada no local; 5) É o resultado de um hiato de oito anos na obra do escritor; 6) Ambientado em Dublin, é repleto de locais reais, famosos ou não, que o autor conheceu na sua estada de 32 dias por lá, em 2007; 6) Hairy Lemon é um pub que realmente existe; 7) O livro tem um nome longo e que, em tempos de micro-literatura, já poderia ser considerado um romance em si: Digam a Satã que o Recado foi Entendido. 8) Seu autor é Daniel Pellizzari.




Quem conhece a obra de Daniel Pellizzari, um dos fundadores da icônica editora Livros do Mal — tradutor de escritores como David Foster Wallace, Jeffrey Eugenides, Irvine Welsh, entre outros tantos — e autor de Ovelhas que Voam se Perdem no Céu, O Livro das Cousas que Acontecem e Dedo Negro com Unha, está acostumado com sua miríade de referências em jogos estruturais e literários que muitas vezes pareciam abdicar de uma maior sensibilidade ou apreço por construção de personagens. Aqui, a coisa é muito diferente. Mais convencional em sua estrutura, Digam a Satã que o Recado foi Entendido (Companhia das Letras, 2013, 180 páginas) concentra-se de forma intensa nos personagens, extremamente críveis e com personalidades muito diversas. O que não mudou foi o senso de humor, característico do autor, ainda que melancólico e delirante, capturando a empatia de seus personagens, errantes em uma Dublin onde pubs escuros são uma companhia perfeita a almas de “idiotas extraordinários”.



E nestes pubs escuros — Bleu Note, Boar’s Head, Hairy Lemon — não é o olhar do escritor brasileiro que determina que a noite de seus personagens deva ser regada por Guinness. É a tradição mesmo. Afinal, a cerveja nasceu em, chorem, 1759, obra de Arthur Guinness e, mais de 250 anos depois, é produzida com a mesma composição: malte irlandês, água de Dublin, lúpulo e levedura. E há, é preciso, que se elencar uma porção de fatos sobre a famosíssima cerveja: 1) Sua coloração (que não é preta; olhe contra a luz e verá a cor avermelhada) vem da torrefação do malte e não representa nada no teor alcóolico — míseros 4,2%; 2) É a cerveja stout mais vendida no mundo: 10 milhões de pints são vendidas todos os dias; 3) Metade da cerveja consumida na Irlanda é Guinness, 4) Cerca
de 40% da Guinness é consumida na África; 5) Foi obra de seu diretor Hugh Beave, em 1954, o Guinness Book of Records, como uma forma de elucidar dúvidas surgidas em conversas de bar, acompanhadas pela cerveja, é claro. Uma tática de marketing que perdura até hoje; 6) Experimente colocar uma Guinness em um ensopado de carne com batata: certeza de carne macia e saborosa; 7) Em 1799, Arthur Guinness desiste de produzir a versão Ale para dedicar-se somente a stout porter. Mas, em 2010, uma lager passa a ser produzida, com o nome de Guinness Black Lager, focando em um público mais jovem. 8) O nome de seu pint clássico é Irish Imperial Pint (tradicional copo de 568 ml, com a boca mais larga que a base).

Hoje, engarrafada em 50 países, vendida em mais de 100, com cerca de 120 pints vendidos por segundo, sexta maior cervejaria do mundo, a marca poderia — no alto de seus mais de dois séculos — fazer uso de uma inscrição no pub favorito de Magnus Factor: “Hoje é o amanhã que ontem nos preocupava, e tudo vai bem”. Embora, como vai mais do que bem, nada mais justo que o que marque a Guinness seja mesmo seu slogan consagrado: “As coisas boas vêm para aqueles que esperam”.

Publicado originalmente na HNB Mag.