04 junho 2014

Lá em cima: a montanha de Thomas Mann





Na Alemanha do século XVIII, a intelectualidade ansiava pela criação de uma literatura nacionalista, que pudesse expressar em forma de arte o que chamavam de “espírito alemão”. Esta literatura encontrou sua representação na criação de um tipo de romance protagonizado por um personagem jovem e de origem burguesa, em uma jornada de aperfeiçoamento pessoal e superação dos seus conflitos. Uma literatura, vale ressaltar, que assumia também a função didática de contribuir para a educação e formação do leitor — grande preocupação da época. O livro que inaugurou este estilo foi Os Anos de Aprendizados de Wilhelm Meister, romance de Goethe de 1795. O termo cunhado para defini-lo é obra do filólogo Karl Morgenstern: Bildungsroman. Cento e vinte e nove anos depois, o já consagrado autor de Os Buddenbrooks e Morte em Veneza escreve o romance que não somente iria inserir-se nesta que se tornou uma das maiores tradições literárias, mas que seria considerado um dos livros mais importante da literatura mundial, A Montanha Mágica. 


O ano era 1912 quando Thomas Mann iniciou a escrita deste livro, em um processo que iria perdurar até 1924, interrompido entre 1915 e 1919 pela Primeira Guerra Mundial. Se fosse tomado pela sinopse singela — o jovem Hans Castorp chega a um sanatório para visitar seu primo, durante três semanas, e ali permanece sete anos, até ao início da Primeira Guerra —, seria praticamente impossível fazer crer que se trata de um catatau de 1000 páginas, em seu original, e 840 na edição portuguesa da D. Quixote (e 957 na brasileira, da Nova Fronteira). Mas o prodígio de Mann neste livro é o que o torna o clássico merecido que é. A permanência de Hans Castorp no sanatório, por mostrar sinais de padecer de tuberculose pulmonar, é o mote para Mann nos apresentar um microcosmo do pensamento do pré-guerra da Europa. Os numerosos personagens do livro representam os pensamentos e tendências que predominavam aquele momento, e são aqueles que impulsionam o afastamento cada vez maior de Castorp das noções de tempo, família e carreira, encantado pela “Montanha Mágica” — o sanatório em Davos, o lugar “lá em cima”, no alto dos Alpes Suíços. Política, arte, cultura, filosofia, religião, liberalismo, conservadorismo e hedonismo vão compondo o amadurecimento e a formação do jovem Castorp em um ambiente montanhoso monótono, de neve eterna e repouso infinito. A sala de refeições, onde passam a maior parte do tempo, consumindo as cinco fartas refeições diárias “é um lugar onde não há tempo nem vida”, um espaço febril cuja monotonia precisa ser aplacada, ainda que minimamente:

“A sala estava mergulhada numa cintilação branca, de tanto leite que se via: em cada lugar aguardava um grande copo de leite, de meio livro talvez.

— Não — disse Hans Castorp, quando se voltou a sentar no seu lugar à ponta da mesa, entre a modista e a inglesa, desdobrando resignadamente o seu guardanapo, não obstante sentir-se ainda bastante cheio do primeiro pequeno-almoço. — Não — repetiu — Deus me ajude e me proteja, leite é que não bebo e muito menos a esta hora. Será que não têm porter? — E dirigiu a pergunta à anã, cheio de mesuras e delicadeza.

Infelizmente não havia. Mas a anã comprometeu-se a trazer-lhe cerveja Kulmbacher e cumpriu o prometido. Era uma cerveja preta espessa, de espuma acastanhada, o perfeito substituto da porter. Hans Carp bebeu com avidez um copo alto de meio litro.” 

Em sua dimensão colossal, A Montanha Mágica parece querer criar um compêndio enciclopédico que abarca o caldo científico e cultural que dominava a Europa, como se Mann quisesse que o leitor deixasse o mundo real do lado de fora, já que no livro há tudo o que se precisa. Neste caldo cultural, portanto, natural que surja uma representante da Kulmbacher Brewery Corporation, empresa fundada em 1895 no leste da Baviera. Com um grande portfolio de produtos, a cerveja a que provavelmente Mann se refere em seu livro é a Kulmbacher Eisbock, feita através do congelamento de uma doppelbock e remoção da sua água congelada, concentrando o sabor e quantidade de álcool, que varia entre 9% e 13%. 

As crônicas que relatam sua criação creditam o acaso como mestre cervejeiro: em torno de 1900, um aprendiz esqueceu dois barris de cerveja bock em meio ao frio avassalador — fato que só foi descoberto na primavera seguinte. Cobertos de gelo e neve, os barris tinham explodido, mas por abaixo de uma manta espessa de gelo, o sabor forte — que remete a frutas escuras maduras, especialmente passas e ameixas, caramelo e toffee — e alto teor alcoólico estavam acentuados. Hoje a Eisbock é produzida em um processo moderno de fabricação da cerveja e de congelamento, mas o sabor continua perfeito para a degustação no mais inclemente inverno. Mesmo que seja “lá em cima”, degustada num lugar de tempo específico, que nada tem a ver com o mundo “aqui embaixo”. 

Publicado originalmente na Last Call For Beer!.