Em janeiro de 20014, a nova revista da Have a Nice Beer estreou. E para o primeiro número da Last Call! for Beer, fui convidado a entrevistar Lobão. Segue abaixo a entrevista, na íntegra.
IMAGINÁRIO COLETIVO. SENSO COMUM. Pense aí o que lhe vem à cabeça — e o que você acha que surge na cabeça da maioria — quando se citam nomes como Silvio Santos, Elis Regina, Cazuza, Mussum, Chacrinha. Personalidades nacionais repletas de adjetivos a gravitar em torno de suas imagens. Mas e quando o nome citado é o de Lobão? E, temos de concordar, um nome que tem sido muito citado já há um bom tempo. Em determinado momento de seu mais recente livro, Manifesto do Nada na Terra do Nunca (Editora Nova Fronteira, 2013, 247 páginas), ele poupa o leitor deste exercício e assume — e é bom que fique claro, para desenvolver sua tese, livre da clássica indagação Afinal de contas, quem é você? — as corriqueiras qualificações que lhe foram impugnadas ao longo de todos estes anos: drogado, desimportante, mal social, criatura de péssima personalidade, arrogante, reacionário, boquirroto, vendido, debochado, pró-ditadura, pró-tortura, invejoso, marqueteiro, incestuoso, epiléptico, matricida, medíocre, e por aí vai. Auto-indulgência? O certo é que adotar todos estes estigmas, ainda que de forma irônica, no mínimo depõem contra o Nada que ele encarna como a metralhadora giratória (outro de seus adjetivos) e autor deste Manifesto. Afinal, gerar tantas imagens na mente de tantas pessoas, há tanto tempo, quando seu nome é citado, não pode ser obra de um nada. Pelo contrário, a fartura é tanta que fica a livre escolha: Lobão apresentador da MTV, Lobão repórter do programa A Liga, Lobão criador da revista Outracoisa, Lobão escritor, Lobão colunista da Veja, Lobão músico?
Aos 57 anos, João Luiz Woerdenbag Filho não passa incólume à citação do nome com o qual surgiu no cenário nacional, como então baterista da Vímana, banda que reuniu, entre outros, Lulu Santos e Ritchie. À cada aparição, citação, lançamento, um petardo. Para alguns, marketing. Estratégias orquestradas para se manter eternamente na pele de “ovelha negra”. Mas será Lobão realmente uma ovelha negra? Não seria mais um dos rótulos fáceis aplicados a este que foi um dos fundadores da Blitz, hoje uma das poucas personalidades capazes de emitir suas opiniões de forma clara, corajosa e contundente? Um sujeito que não se nega ao debate quando chamado a ele. E de opiniões tão múltiplas quanto suas habilidades de músico. Antes mesmo do lançamento de seu livro, já pipocavam pela imprensa excertos da obra que, descontextualizados, mexeram com os brios de Caetano Veloso a Chico Buarque, de Paula Lavigne a Mano Brown. O que é curioso, ou ardiloso, pois estes excertos cumpriram exatamente a sina que a orelha do livro já prenunciava: “É certo que muita gente vai criticar este livro só de orelhada, a partir de frases tiradas do contexto e de uma visão estereotipada de seu autor.” Mas quem realmente se dá ao trabalho da leitura vê que o bicho não é tão feio quanto se pinta. Ao contrário de “alvos”, como os nomes acima foram constantemente citados, percebe-se que eles somente existem dentro de contextos de argumentos claros. Com o objetivo de “desmascarar os vícios da formação cultural brasileira”, Lobão vai da análise da MPB, desde seus mais imberbes anos, passando pela indústria musical brasileira, o questionamento da Comissão da Verdade, criado pela presidenta Dilma Rousseff, sua desilusão com o PT, até episódios muito pessoais, como o de sua recusa em tocar no Lollapalooza e sua saída do programa A Liga.
Você só tem duas e óbvias possibilidades, de concordar ou não com o autor. Eu mesmo discordo de alguns de seus argumentos, como sua posição contrária à política de cotas para negros na cultura e para minorias nas universidades. Mas isto não me impediu de encarar o livro como ele é: pensamentos de um sujeito que, por ser portador de opiniões dissonantes do senso comum é impugnado com os rótulos — senso comum — de polêmico e ovelha negra.
Goste ou não dele, Lobão é uma presença fundamental em um cenário que — à revelia da hiperinformação e da conectividade, com as ferramentas a favor da possibilidade de opiniões múltiplas —, dia após dia, parece um celeiro de repetição, likes e shares. Nada mais natural que a Last Call for Beer, em seu primeiro número, entreviste este artista para levar aos leitores o mesmo que a HNB espera toda vez que leva uma cerveja diferente às suas casas: diversidade de opiniões.
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Lobão: o que é a música brasileira hoje?
Sinceramente, não acredito que haja qualquer possibilidade honesta de alguém, nos dias de hoje, traçar um perfil preciso sobre o que seria a música brasileira.
Hoje o Lobão escritor, articulador (até recentemente, apresentador) e, agora, colunista de Veja, está mais em evidência do que o Lobão músico. Você está feliz com este atual momento da sua carreira ou às vezes sente falta de ser somente o Lobão músico?
Em primeiro lugar, eu não percebo a minha realidade dessa maneira. Se formos levar em consideração toda a minha trajetória rumo à criação de uma cena independente no Brasil, a numeração de CDs, a revista OutraCoisa [lançada em 2003, sempre com um CD encartado, e que revelou importantes bandas e artistas, como Cachorro Grande, BNegão & Os Seletores de Frequência, Mombojó, Vanguart, entre outros. A revista durou até 2008], o Universo Paralelo [2001: Uma Odisséia no Universo Paralelo, disco independente lançado por Lobão em 2001], vamos verificar que eu nunca tive um público tão numeroso e fiel como tenho atualmente. E se formos prestar mais atenção aos fatos, constataremos que ter dois livros como bestsellers em menos de 3 anos, ser convidado para escrever na Veja, ser cooptado para atuar em diversos programas de TV, só me proporcionaram uma quantidade de público cada vez maior nos meus shows. Esse fim de semana [a entrevista foi realizada em 23 de outubro], toquei pra mais de 5 mil pessoas num evento próximo à Belo Horizonte e pelo menos 3 mil delas carregavam consigo o Manifesto do Nada na Terra do Nunca. Fora os outro tantos que traziam o 50 Anos a Mil [autobiografia de Lobão lançada em 2010, escrita em parceria com Claudio Tognolli]. Minhas atividades são sinergéticas e aglutinatórias. Nada se perde, tudo se multiplica exponencialmente.
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“O BRASIL POSSUI
UMA “FROUXISE”
ENDÊMICA E AMARGA.”
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Em 2003, com a revista Outracoisa, você criou um modelo que elevou a visibilidade e reconhecimento da música independente. Ao mesmo tempo, você dizia que era um cara do mainstream, que “estava independente”. Considerando as mudanças na indústria da música, quais são as possibilidades que lhe parecem mais interessantes para um artista hoje?
Nenhuma. O artista novo nunca esteve tão desamparado e tão à mercê das ideologias em voga atualmente. Se você for mainstream, tem que se virar com o sertanejo, o pagode e o axé universitários. Se for mais alternativo, cairá nas garras do Fora do Eixo e irá trabalhar como escravo pra eles, encarnado como a nova MPB neo tropicalista. Simples assim.
Falando em sertanejo universitário, sobre o qual você já manifestou sua aversão (inclusive com o divertido mergulho gonzo, relatado em seu mais recente livro), para você qual é a estrutura que cria fenômenos musicais como este?
Uma péssima educação + capitalismo selvagem + doutrina esquizofrênico/nacionalista do governo.
Apesar de já se fazer rock no Brasil desde os anos 50, como você relembra no quarto capítulo de seu livro, por que o gênero é — usando um termo seu — “evaporado” a cada década?
O Brasil possui uma “frouxisse” endêmica e amarga, uma constrangedora inveja do seu irmão bem sucedido, a América do Norte. A intelectualidade de esquerda morre de inveja da potência cultural americana e deflagra-se a já clássica e histórica inveja do falo americano através de guitarra elétrica. Por isso, nossa pulsão de morte em relação ao roquenrou.
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“ACHO QUE ELE [BERNARDO VILHENA]
DEVE ESTAR PASSANDO
POR ALGUMA FASE DIFÍCIL
E SEU DISCERNIMENTO, MEMÓRIA E CARÁTER
FICARAM SEVERAMENTE ABALADOS.”
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Em seu livro você escreve sobre um “filtro de qualidade, em busca da genealogia perfeita”, usado como princípio para a construção do status de artista da MPB na década de 70. Este filtro ainda existe? E, se sim, como ele repercute no momento musical atual?
Sim. Ele nunca foi tão forte. Agora temos clones que beiram a demência emulando o Chico, o Caetano, a Bethânia e outros mais. Tudo gira em torno dessa farsa deprimente.
Suas parcerias, assim como declarações de admiração e amizade com Júlio Barroso e Cazuza são notórias. Bernardo Vilhena [poeta e letrista, parceiro de Lobão em várias canções], em recente entrevista ao site Scream&Yell, no entanto, declarou o seguinte: “Ele prega uma amizade com o Cazuza e o Júlio Barroso que ele não teve”. O que você tem a dizer sobre isto?
Bem, isso é muito simples: leia os créditos das minhas parcerias. Elas respondem por si próprias. Nem é necessário me alongar mais nessa sórdida especulação.
Mas na mesma entrevista, Vilhena declara: “O dia que ele parar de cantar as minhas letras no show dele, eu passo a respeitar.” Ele afirma ainda que você agiu “de uma forma desonesta” com ele. Por que ele quer que você deixe de cantar as letras dele e a que se refere quando o chama de desonesto?
Em primeiro lugar, ele terá que provar aonde e porquê eu fui desonesto. Caso contrário, estará praticando um ato de calúnia e difamação. Quanto às minhas parcerias com ele, eu as tenho, sim, e são minhas canções. Não recito poemas de Bernardo Vilhena. Canto minhas canções que, eventualmente — num percentual bastante diminuto —, foram feitas em parceria com ele. E, por sinal, na maioria delas, houve correções e intervenções consideráveis de minha parte em suas… letras. Sem contar com as chamadas parcerias de condomínio como canções do tipo: Essa Noite Não, Corações Psicodélicos, Moonlight Paranóia, feitas com a presença de outros parceiros , além dele, como o Júlio Barroso, o Ivo Meirelles e outros mais. Sugiro que ele as selecione suas letras e que tente fazer um recital declamando-as. Com seu poderoso carisma, pode se tornar um sucesso, né? Mesmo na época em que [eu] compunha com o Bernardo, já fazia canções sozinho como Me Chama, Decadence Avec Elegance, Canos Silenciosos. Todas hits nacionais, e com outros parceiros como o Júlio Barroso (Noite e Dia), Tavinho Paes (Rádio Blá, Presidente Mauricinho, Quem Quer Votar, Sob o Sol de Parador). Com o Cazuza (Mal Nenhum, Baby Lonest, Junkie Bacana, Azul e Amarelo). Aí, sou eu que pergunto: algum problema? Acho que ele deve estar passando por alguma fase difícil e seu discernimento, memória e caráter ficaram severamente abalados. Lamento muito. Nutro carinho pelo Bernardo. Ele tem talento.
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“REPARAÇÃO HISTÓRICA JÁ É UM CONCEITO
DOS MAIS IDIOTAS.
QUEM PENSA ASSIM
JÁ ESTÁ COMENDO COCÔ.”
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No Manifesto do Nada na Terra do Nunca, você diz que o rap e o hip-hop “caíram na repetição de clichês ressentidos, emburrados, com uma assustadora ausência de humor”. Estes movimentos/gêneros já foram mais bem humorados?
Pelo que me consta, isso nunca aconteceu. Mas eu sempre torci para que, em algum determinado momento, esse humor redentor eclodisse.
Qual sua opinião sobre novos artistas do gênero, como Emicida e Criolo?
Não sinto muito entusiasmo em ouvir esse tipo de música. Está um tanto aquém da minha benevolência/paciência
Ainda existe ideologia na música brasileira?
Infelizmente, somos vampirizados pela ideologia. Enquanto houver ideologia não vai haver poesia.
E quem são alguns dos artistas da música brasileira que você gosta de ouvir hoje?
Hamilton de Hollanda, Yamandú Costa, Cachorro Grande, Réu & Condenado, Vanguart
Em seu livro você se posiciona contra a política de cotas raciais nas universidades, bem como nos projetos do Ministério da Cultura. Escreve “Será que ninguém enxerga que ao tomar essas medidas não haverá a tal reparação histórica aos negros e índios, pois, na verdade, todos temos sangue negro, índio e europeu.” Haveria, na sua opinião, alguma forma mais bem sucedida de fazer esta “tal reparação histórica”? Aliás, esta reparação é necessária?
Reparação histórica já é um conceito dos mais idiotas. Quem pensa assim já está comendo cocô.
Seu livro provocou críticas de setores de esquerda, de setores ligados ao hip-hop, dos sertanejos universitários, entre outros. Faltou senso de humor aos leitores, como já li em declarações suas, ou falta habilidade em lidar com opiniões contundentes e contrárias?
Haveremos de ressaltar que esses grupos são meus alvos preferidos e, se, por acaso agissem de modo diferente, seria eu maluco. Por um lado, felizmente, eles corresponderam às minhas expectativas. Quem dera estivesse eu errado.
Vivemos na era da hiperinformação, mas, é impressão minha ou está mais difícil hoje se manter um debate intelectual no Brasil?
Não existe debate: existe patrulha e difamação.
Lobão músico, Lobão escritor, Lobão apresentador, Lobão colunista. Em qual destas atividades, a pessoa João Luiz Woerdenbag Filho se sente mais feliz?
Me sinto feliz praticando todas elas, pois eu sou integralmente Eu em todas e todas me representam, com todo meu orgulho e paixão. Como poderia ser diferente?